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Desculpa

Houve uma altura em que o que era deixou de o ser... Depois, apercebi-me que tinha deixado de ser o que era. Depois fiquei preocupado por ter deixado de ser o que era e perguntei-me o porquê de isso ter acontecido. Depois reparei que a minha preocupação por ter deixado de ser o que era e o motivo de me perguntar do porquê de isso ter acontecido se prendiam ambos com uma saudade imensa de ser outra coisa que não aquilo que me tinha tornado, mas, se possível, aquilo que fora antes.

Houve uma altura em que precisei de saber o que fora antes. Vi sonhos que não eram sonhos, planos que não eram planos e uma vida que não era vida e no entanto... No entanto, tudo isso era eu e o meu avião azul e amarelo, e o meu carro branco chamado Soneca, e a minha Milú com a minha Guziluz... Os meus carros perfeitamente alinhados e organizados não por marca nem por idade mas pelas marcas que a falta de cuidado lhes deixou. Os meus Playmobil, organizados por tema. Os meus Lego para construções e sonhos imaginados de viagens sem sentido para lado nenhum.

Vi o medo das reguadas por causa não da falta dos deveres, mas apenas porque não via sentido nenhum nos deveres. Vi notas que podiam ser melhores mas que não o eram porque não via necessidade de me esforçar se conseguia passar sem o fazer. E vi-me crescer, e vi-me amar e vi-me sofrer e vi-me desistir e vi-me insistir  e amar e de novo desistir......
Depois vi-me homem. Vi-me promessas e adaptações. Vi alterações e pressões e vi muita coisa que me fazem querer arrancar os meus próprios olhos só por ter visto. E vi-me aceitar o jugo e o peso da responsabilidade do que fizera, não porque não fosse fácil recusar esse jugo, não porque não o pudesse passar a outrém que o carregasse, mas porque considerei que, como homem, teria de ser responsável pelos meus actos e pelo reflexo dos mesmos na vida dos outros.

Abandonei esperanças e deixei-me no que poderia ter sido. E afirmei ao vento e ao mar que iria lutar não por ser feliz mas por merecer ser feliz. Jurei que faria da felicidade de outra pessoa o motivo pelo qual seria feliz e que se o amor me quisesse por à prova novamente iria aceitar o convite de cabeça erguida e jogar justo, limpo, claro e sem qualquer mácula.

Estava eu sentado na minha Torre....
Ocupado que estava a ser eu ou a tentar não o ser, ou talvez a tentar descobrir o que era para decidir se o que era era o que queria ser ou se era o que não queria ser precisando então de deixar de ser o que era para passar a ser outra coisa que não era mas queria ser..... Do nada, o amor diz-me: "vou dar-te outra hipótese.". Eu levanto-me, sacudo o pó, olho o amor nos olhos, e altivo como quem não tem nada a perder digo "vou dar-te outra hipótese.".
Jogo justo, limpo, claro, sem mácula um jogo novo que já tinha jogado mas com regras diferentes. Jogo com as minhas regras, as auto-impostas: limpo, claro, justo, sem mácula. Digo a mim mesmo: "Pensa no que fazes." "Faz tudo como se o Mundo te contemplasse." "Se sabes que tens de esconder um pensamento ou um acto antes de o fazer, sabes que não só não deves como não o podes fazer." Justo. Limpo. Claro. Sem mácula.

Hoje não tenho nada que possa esconder. Os meus actos são, ou tento que sejam justos. As minhas atitudes são, ou tento que sejam limpas. A minha vontade é, ou tento que seja clara. E a minha vida é, ou tento que seja, levada sem mácula.
Erro. Pago.
Um dia serei o homem melhor que quero ser. Por enquanto, vou sendo o homem bom que consigo ser e vou-me esforçando todos os dias por fazer os deveres que não fiz quando levava reguadas.
Para quem falo? Para quem me compreende... Se para mais ninguém além de mim, para mim, que seja. Ao menos sei que me devo estas palavras de vez em quando.

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