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Quot dies...

Todos os dias vejo o sol nascer. Tempos houve em que o via descer e lhe prometia "vai-te, senhor do Dia, eu te espero até voltares...". Hoje, todos os dias como hoje, vejo-o nascer apenas porque me mantenho a pé mais tempo do que Ele. Porque, mesmo nos dias mais longos, me levanto de minha cama quente quando a bola dourada ainda não se vê no Leste longínquo... E saúdo-o quando já vou em viagem, enquanto me encaminho para o meu dia.
Antes de sair de casa, todos os dias, ensaio algo para comer ou beber e quebrar o jejum. Não é fome, é dever. É saber que o meu corpo precisa de sustento mais do que a minha consciência se apercebe. Pegar em algo de alimento para a jornada, partir antes que a família (ou o Mundo) sonhe em acordar.
Chegado ao local onde o sono e o dever se fundem e confundem, ainda sem que a larga maioria das pessoas que conheço pense em acordar, esperam-me duas horas, talvez mais, de imobilidade erecta. Dividir e organizar. Compatibilizar, detectar erros, corrigí-los ou anulá-los. As pernas, doridas do dia anterior, voltam a lamentar-se e a queixar-se do cansaço. Silencio-as. Espera-me ainda um dia inteiro de esforço inominável. Não é lícita a queixa prematura. Dividido, organizado, compatibilizado, detectado, corrigido e anulado tudo quanto é parte burocrática, pego no resultado e parto para a rua.
Já se vê gente na rua. Gente cansada que não dormiu o suficiente durante a noite e blasfema, entre bocejos, contra o dia que chegou tão cedo. Sorrio, tentando não me sentir insultado a cada maldição que ouço de outras pessoas que têm os seus próprios dias... E as sombras, pela cidade, ainda tão longas. Pego em meu fardo, tão pesado quanto o meu corpo, e faço-me às ruas. Animado, desanimado, o meu estado de espírito influencia apenas a velocidade de arranque e os primeiros momentos. Depois, cada passo é um grito de revolta muscular, cada vez que pouso o fardo, cada vez que tenho de voltar a carregá-lo...
Os "bons dias" transformam-se em "boas tardes", as pessoas que passaram por mim em direcção ao emprego passam de novo na direcção oposta para irem almoçar... Almoçar... e de novo a blasfemar por a manhã ter passado tão lenta, por o almoço tardar tanto, do cansados que estão apesar da pausa para o café, da pausa para o cigarro e das pausas para o w.c.. Mas eles estão cnasados e é lícito que o estejam. Trabalham. Quem sou eu para dizer que eles não têm razões de queixa...?
As sombras diminuíram. Passaram de trás de mim para a minha frente... As sombras ultrapassam-me e tendo acabado um fardo, recarrego... e recarrego de novo quando acaba a recarga. A cada recarga, martírio dobrado, reiniciado, retomado do zero. As mesmas pessoas voltam a passar por mim com lamentos do quão rápido o almoço passou... de como os dias estão todos iguais... de quão ensosso estava o prato e salgada a sopa... de quão salgado estava o prato e ensossa a sopa... e eu sem almoço ouço-os e considero que as queixas deles são lícitas e perfeitamente fundamentadas porque quem trabalha deve ter direito a um almoço decente. Se eu ao menos tivesse um almoço...
São duas, três, quatro, nos dias maus, cinco horas da tarde e sento-me no meu carro olhando o céu de tecido cinzento.... Agradeço aos Deuses a força que tive em cada passo, de cada vez que ergui aquele peso do chão e o coloquei ao ombro. Levo as mãos às pernas, ao meu braço, ao meu ombro. Um afago, quase como simulação de massagem, quase como tentativa de compensação pelo mau-trato. Vão. O cansaço aproveita a aberta e exige do meu corpo a resignação e rendição. Fecho os olhos sentindo as gotas de suor a fazer da minha cara auto-estrada e saindo em perseguição umas das outras.
Partida de novo para a burocracia. Uma hora, mínimo. Tratar dos desperdícios... Provar que cumpri o pedido. Assumir erros. Responsabilizar-me por eles. Metade do serviço em pé, metade sentado, sedativo para as pernas. Voltar ao carro em direcção a casa. Porque é que os pedais são tão pesados? Porque é que me custa tanto o ponto de embraiagem? A auto-estrada surge quase esfumada, nebulosa num dia límpido de Verão... O carro sabe o caminho sozinho e sem que me dê conta deixa-me em segurança em casa.
Um banho quente, ainda em pé, e deitar-me ao comprido na cama que deixei há 15 horas atrás...
Os lamentos começam. Os meus, dos meus músculos, do cansaço.... Os da minha família, das horas que trabalho, do facto de ser explorado.... Os dos meus amigos, da miha falta de tempo, da minha falta de "vontade" e disponibilidade... Debato-me contra o cansaço uma vez mais na espera pelo jantar, porque devo jantar com a minha família mesmo sem fome. Luto em silêncio contra a revolta muscular se por ventura for a casa antes de ir ter com a minha Luz, a única que não se queixa por se aperceber de como é cada um dos meus dias.
A isto está votado um dragão... A provar, a si mesmo e aos outros, que é capaz. A enfrentar cada dia como um homem justo, honesto, sério e trabalhador. A ouvir lamentos de toda a gente e a silenciar os seus quando não são compreendidos... Esta é a minha explicação, de forma muito simples e linear. Este é o meu lamento submetido à razão das palavras. Este é o meu relato daquilo que se passa, não uma vez de vez em quando mas quotidianamente. Quem quiser testemunhar, acompanhe-me meio dia. Quem conseguir, ainda assim, queixar-se de mim.... Acorde para a vida.

Devaneios de uma gárgula....

Comentários

blonde disse…
Não se queixa quem não pode sentir saudades tuas porque te vê e está regularmente contigo. Percebo o cansaço, percebo isso tudo. Percebe a nossa saudade de não te termos connosco há tanto tempo. A saudade aperta e não é acompanhando-te que a podemos matar. Tira um final de tarde, inicio de noite, fazemos o jantar, deixamos que descanses e levamos-te a casa. Ou então um sábado ou domingo.
Devaneios de uma amiga com saudades...
Dahnak disse…
Sair de casa é-me doloroso.
Marquem-se coisas para quando puder, realmente, é a melhor opção. A minha semana nem minha é. Lamento que não compreendam isso. E nem em sonhos vou deixar que a minha namorada alguma vez tenha saudades minhas.

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