Avançar para o conteúdo principal

Os dias da alma

Ele há dias em que a minha alma me mantém apartado de mim mesmo. Dias em que temo por saber e sei por temer que as minhas acções nas vidas dos outros pesam na minha consciência e que as reacções dos outros na minha vida se tornam como uma capa de chumbo.
Outros dias há em que, tendo direito a três horas de sono e à escravatura social imposta impreterivelmente ao quotidiano, contra todas as expectativas ou lógicas biológicas abro as asas e ultrapasso condicionantes e condicionalismos, objectos e objectivos, alçando vôo e arrastando o mundo atrás de mim com uma leveza desconcertante.

A minha alma tem marés. Marés que me afogam ou me levam a vogar... Marés que me empurram para a dura realidade da praia ou para o mar alto da incerteza. O porto de abrigo por que me tomam, por que me têm, fraqueja por vezes e sai noutras vezes reforçado.
Qual a utilidade de um cais seguro se não houver barcos dispostos a ancorar, a protegerem-se de intempéries nesse mesmo cais? De que servirá um dado porto seguro se os barcos que o escolhem para sua protecção se sentem culpados pelas ondas que chocam contra os muros, pontões e molhes?
Ultrapassa a noção de que, em partindo um barco, outros poderão ancorar... A ondas continuarão a bater.
Ao abandonar um barco o seu porto para enfrentar a tempestade na busca pela subsistência, a tempestade acompanhá-lo-á? Não. É de facto mais provável que em mar-alto haja um mavioso céu azul e uma faina proveitosa enquanto que em terra a chuva e o vento, as ondas e as marés continuam a fustigar as costas do porto do qual o barco partiu...

Sabem o que acontece quando as tempestades assolam um porto? A capitania encerra a barra e não deixa sair nenhum barco. É comportamento comum.

Há dias em que o esforço parece não compensar e dias em que a recompensa sabe mais doce do que devia. Há dias em que abandonar a Torre me parece a única opção disponível, vadiar pelo mundo e deixar tudo o que fiz e criei em ruínas porque, inopinadamente, é como tudo acabará. Há dias em que a minha arruinada Torre se afirma como o meu lar e se impõe exigindo que trate dela e de mim como devo, zelando por tudo o que construí e pelos sacrifícios que fiz para ter o que tenho.....

A minha alma tem marés, mutáveis, com ondas gigantescas e calmias mitigantes... A única coisa segura realmente é existência do mar e da terra... Porque os barcos partem... e porque os portos desmoronam. A menos que a insistência e a necessidade do barco justifique a subsistência do porto.... a menos que a segurança do porto justifique a permanência do barco.

Devaneios de uma gárgula....

Comentários

Mensagens populares deste blogue

parte 1

É atirada ao material uma criança... Um bebé que viria a ser uma criança... À carne, ao físico, ao tempo e espaço. Depois, contextualiza-se e integra-se essa criança num todo... Um grupo de condicionantes e fatores de como é suposto ser tudo. Um status quo inescapável de outros seres semelhantes que surgiram antes... Expectativas, padrões, normalidades, regras e o indivíduo neófito submete-se naturalmente à força passiva dos tantos contra nada, como se não houvesse qualquer violência envolvida. Não é explicada qualquer existência de quebras ou excepções ao padrão... Até o indivíduo se aperceber que é, ele próprio, uma excepção em algo... Há nele uma latente fuga às normas e não sabe que a fuga às normas é em si mesma normal...  Este é o primeiro conflito real do ser: admitir-se excepção ou refutar-se enquanto tal. A uma criança contextualizada no tácito contato social e sobreimposto status quo, ser a excepção em algo fundamental como, digamos, um núcleo familiar standardizado, constitu
"Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste... As paixões dormem , o riso postiço criou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutraliza, e só um ruído sobreleva: o da morte, que tem diante de si o tempo ilimitado para roer. Há aqui ódios que minam e contraminam, mas, como o tempo chega para tudo, cada ano minam um palmo. A paciência é infinita e mete espigões pela terra dentro: adquiriu a cor da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a manha anda e desanda, e, por mais que se escute, não se lhe ouvem os passos. Na aparência, é a insignificância a lei da vida. É a paciência, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde: - Tem paciência – e os teus dedos ágeis tecem uma teia de ferro. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados. E o
A todos quantos possa interessar, esta gárgula tem estado em clima introspectivo... A aprender algo em que seja realmente bom, a dedicar-se à escrita para posterior publicação. Só para que todos vocês, que não estando diariamente comigo se preocupam com o meu estado inundando-me com carinhosas mensagens pedindo novas, boas ou más, todos os dias, saibam que está realmente tudo bem. Raios me partam mais os devaneios...