Avançar para o conteúdo principal

Aquilla, aquillae...

Era de noite... Eu sei que era. Era de noite e eu dormia na minha cama, descansado, sem pensar em guerras nem em fomes. O mundo está em paz... os meus pais adoram-me... Tenho cinco anos o que é idade a menos para que uma criança da minha idade fale assim. A minha cama afasta-me de todo o mundo e nada conta além da paz do meu sono. Paz que, pela minha idade, não posso valorizar...
De repente, os cães começam a ladrar e despertam-me. Abro os olhos e ouço os latidos misturados com ganidos e uivos... O meu gato, reparo agora, está à porta do quarto, com o pelo todo iriçado e a bufar com medo... Mas medo de quê? "Fredo, sou eu! Que foi, gatinho?" Ele não se acalma...
Aproximo-me da janela e vejo os cães a correrem, a latir e a uivar, de orelhas baixas, cauda entre as pernas, entre as luzes dos lampiões da rua. Não percebo nada....
De repente, tudo começa lentamente a tremer. Na parede do meu quarto surge uma racha que se esconde atrás do poster do Mickey e volta a mostrar-se na outra ponta. Os meus bonecos, os carros, começam a cair das prateleiras e eu não percebo nada do que se está a passar. O meu guarda-roupa geme e treme e as portas abrem-se de par em par. Grito. "Mamã, papá!... Avó!..." Do outro lado da porta ouço a casa em alvoroço mas não percebo se é a casa que está a fazer barulho, as tábuas a rangerem do chão, ou se os meus pais a correrem fazem todo aquele barulho com os passos. "Giovi..." gritam "esconde-te debaixo da cama, filho... Nós já vamos." Eu não percebo... O que se passa? Porque querem que me esconda debaixo da cama? Mas sim, vou fazer como me mandam... Assim que as pernas me obedeçam e deixem de tremer....
Caio... A janela por onde espreitei há pouco lentamente racha e estilhaça. Quebra para dentro e para fora e vidros caem em cima de mim... Sem que perceba fico sem peso, sinto-me a escorregar e tudo passa como que em câmara lenta, como nos filmes... Uma nuvem de pó forma-se do tecto e uma outra do chão... O chão...? Tudo passa a ser menos direito e até a minha cama treme.... Já não ouço os meus pais senão como ecos, muito ao longe... "Giovi! Giovanni! Filho!..." Não compreendo...
De repente não estou no meu quarto mas na cozinha... e a minha cama está na cozinha... e o guarda-roupa está despedaçado com todos os móveis da cozinha... e eu tenho sangue nos braços. Quando é que me cortei? A janela? Tenho tanto medo... Dói! Mamã? Papá? Avó? Onde está toda a gente? O que se passa? De repente a parede da rua cede e cai por cima de mim... Vai-se a dor... Vai-se o medo...

Comentários

muxymuxy disse…
Arrepio...wow... não tenho mais nada a dizer...

Mensagens populares deste blogue

parte 1

É atirada ao material uma criança... Um bebé que viria a ser uma criança... À carne, ao físico, ao tempo e espaço. Depois, contextualiza-se e integra-se essa criança num todo... Um grupo de condicionantes e fatores de como é suposto ser tudo. Um status quo inescapável de outros seres semelhantes que surgiram antes... Expectativas, padrões, normalidades, regras e o indivíduo neófito submete-se naturalmente à força passiva dos tantos contra nada, como se não houvesse qualquer violência envolvida. Não é explicada qualquer existência de quebras ou excepções ao padrão... Até o indivíduo se aperceber que é, ele próprio, uma excepção em algo... Há nele uma latente fuga às normas e não sabe que a fuga às normas é em si mesma normal...  Este é o primeiro conflito real do ser: admitir-se excepção ou refutar-se enquanto tal. A uma criança contextualizada no tácito contato social e sobreimposto status quo, ser a excepção em algo fundamental como, digamos, um núcleo familiar standardizado, constitu
"Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste... As paixões dormem , o riso postiço criou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutraliza, e só um ruído sobreleva: o da morte, que tem diante de si o tempo ilimitado para roer. Há aqui ódios que minam e contraminam, mas, como o tempo chega para tudo, cada ano minam um palmo. A paciência é infinita e mete espigões pela terra dentro: adquiriu a cor da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a manha anda e desanda, e, por mais que se escute, não se lhe ouvem os passos. Na aparência, é a insignificância a lei da vida. É a paciência, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde: - Tem paciência – e os teus dedos ágeis tecem uma teia de ferro. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados. E o
A todos quantos possa interessar, esta gárgula tem estado em clima introspectivo... A aprender algo em que seja realmente bom, a dedicar-se à escrita para posterior publicação. Só para que todos vocês, que não estando diariamente comigo se preocupam com o meu estado inundando-me com carinhosas mensagens pedindo novas, boas ou más, todos os dias, saibam que está realmente tudo bem. Raios me partam mais os devaneios...