Avançar para o conteúdo principal

Ecce gargula

Senta-te aqui comigo... Pela primeira vez em anos sento-me no topo da minha Torre, no meu posto de vigia abandonado... Aqui no topo...
Achas-me charmoso? Pareço-te bem? Obrigado. O meu sorriso sincero será a única resposta que obterás ao elogio. A remodelação do outfit, pela primeira vez na vida, ocorre simultaneamente interior e exteriormente. Vê-me como a velha gárgula que sou. Cabelo curto, penteado, todo de preto vestido... todo não, a minha gravata bordeaux, simultaneamente, empresta-me um pouco do glamour da sua seda, faz-me parecer mais velho como sou e, por se enrolar no meu pescoço, recorda-me do sangue que me pulsa nas veias a cada pulsar do coração que se regenera e se modifica com a Magia que me permite sobreviver a tudo. Asas escondidas sob o sobretudo negro, ou talvez o meu sobretudo negro evidencie as negras asas que representa. Calças, negras. Sapatos negros. Camisa negra... Até o guarda-chuva que uma gárgula não costuma usar, negro. E caminhar, mortal entre mortais, de negro. Obrigá-los, a eles, pela minha presença, a suster o fôlego, o pensamento, o mover da mão... Inertes e entregues ao oblívio da acção... A virar a cara para me verem e a esforçarem-se para olharem na outra direção depois de o fazer. Não há máscara, agora, no passeio do mercado, e quem me olha acha-me diferente no olhar pétreo, no semblante granítico. Torno árdua a conclusão rude e defensiva de que sou esquisito com a minha presença segura a caminhar entre eles...
O "Quinzinho" está demasiado acima das suas corrompidas maquinações, dos seus viciosos hábitos e tratamentos para lhes permitir sequer a ilusão de que é um igual. A minha Torre faz de mim diferente e eu sou escarpado, austero, intangível e incompreesível como ela, não como eles. Finalmente, não como eles, como nunca fui e como à força de ter tentado ser quase consegui. Já não me encerro num canto oculto da minha Torre e faço ouvidos de mercador aos juízos e julgamentos editados pelos irritantes mercadores. Apenas os ignoro. Ergo a mim, junto a mim, quem permito comigo. Quando me vou, levo comigo apenas os que estão e sempre estiveram comigo independentemente do que tenha feito. O meu olhar queima como gelo todos os outros.
Como fogo para uma borboleta nocturna eles não ficam indiferentes à minha presença. Estacado no mercado sou mais do que eu. Sou eu, o que sei que sou, e o que sei que eles temem e supõem que eu seja. Tudo isso o sou, sem máscaras. O pulha, o crápula, o louco, o anjo, o demónio, o grandioso e o miserável. Já não me esforço por me ocultar. Nada do que faça porá a minha alma num patamar mais elevado ou mais baixo na escala do divino. Não tenho redenção senão na ausência de redenção. Não tenho perdão senão na ausência do perdão. Não compreendo nem quero que me compreendam mais do que o necessário para deixar a doce ignorância de sobre tudo imaculada.
Caminho sobre o gelo como se de fogo fosse feito. Caminho à chuva como se eu próprio fosse água. Atravesso silvas e urtigas como se a minha pele fosse aço ou a pedra que de facto é... e não é pela falta da consciência de que o gelo é frio e eu carne, que a chuva é molhada e me ensopa o cabelo e que as urtigas e silvas abrem sulcos na minha pele que me comporto dessa maneira. É por saber que eles pensam que nada do que o mundo tenha me pode causar dano. É por lhes alimentar o medo e a ignorância e a admiração e a curiosidade para me poder alimentar de tudo isso.
Não sou um anjo. Nunca o fui. Não o serei.
Nada do que fiz pode ser mudado ou alterado, minimizado ou inflacionado. Pode ser deturpado e incompreendido por todos incluíndo por mim...
Mas eis-me a mim majestoso, Mestre e Senhor da minha Torre na minha Torre. Não o quero ser em mais lado nenhum excepto quando me tentarem reduzir ao nível das baratas que piso. Por isso tiro a máscara e quando for ao mercado vou sem ela.
Eis-me.
Ecce gargula.

Comentários

blonde disse…
:) espero ser uma das pessoas que levas contigo... de resto nada mais tenho a acrescentar...
blonde disse…
Talvez tenha sido propositado, e o mais provável é que tenha sido, Nietzsche tem um livro com um título semelhante: "Ecce Homo".
Estou a fazer um trabalho sobre ele e deparei-me com o título e lembrei-me deste post.
P.s.: sinto saudades de aprender enquanto passeava pelas ruas do Porto com uma velha gárgula que me despertava a atenção para os pequenos promenores que passavam despercebidos aos olhos da pequena criatura que a acompanhava.

Mensagens populares deste blogue

Ele

Há momentos em que, sem perceba muito bem como, um "eu" desperta em dúvida e incredulidade...  É de madrugada. Pelas frinchas da persiana e através do vidro que separa o frio lá de fora do conforto de entre os cobertores, entram lâminas de luz amarela nascida do lampião do lado da rua. Do que se vê do céu, permanece escuro em conformidade com o esperado. E ele surge em mim com olhos de espanto... Acede ao eu para se reconhecer e saber quando e onde está mas é só ao que consegue chegar. Olha em volta... Analisa o que tenho ao meu redor e vê tudo... Não há malícia, nem má vontade, não há desagrado, não há desprezo... Há a admiração de não se aperceber como está onde estou.... "Como é que vim aqui parar? De onde este conforto? De onde a paz? Que foi feito ou que fiz eu para chegar a isto? De onde a força? Como a disciplina? Sorte?  E para onde daqui? Como continuar? Qual a direção ou sentido? Por onde?" E um novo acesso a mim o faz sondar-me a vontade e desejos... Um t...
Eu levo a bordoada. Calo.  Se consigo digerir, se a bordoada é pequena, sacudo o pó e sigo. Se não consigo, disfarço a dor.  Escondo-a no meu cérebro atrás de outros químicos, Dou covardemente tempo à minha mente tempo para não reagir, Oculto a reação em algo, seja o que for, desde que me ocupe a química que faz os pensamentos.... Porque a biologia sabe que a argamassa que me compõe tem limites, A dor, se colocada em espera por outras questões mais urgentes, perde intensidade. Então faço algo. Exijo ao cérebro atenção para outra coisa. Não importa o quê ou quão ridículo. Mais tarde, provavelmente vem a quebra, O meltdown, o afogamento... Desisto e sinto a dor. Agarro-a.  Ainda estou vivo. Ainda sinto. Mesmo que dor, ainda sinto... A dor prova-me que ainda sou humano e que ainda vivo. Agarro-me a ela. E depois vem o cansaço. A dor sente-se presa e afasta-se e fica o mais grave cansaço. E eu suporto o cansaço porque não há mais que fazer ao cansaço além de o deixar estar co...

parte 1

É atirada ao material uma criança... Um bebé que viria a ser uma criança... À carne, ao físico, ao tempo e espaço. Depois, contextualiza-se e integra-se essa criança num todo... Um grupo de condicionantes e fatores de como é suposto ser tudo. Um status quo inescapável de outros seres semelhantes que surgiram antes... Expectativas, padrões, normalidades, regras e o indivíduo neófito submete-se naturalmente à força passiva dos tantos contra nada, como se não houvesse qualquer violência envolvida. Não é explicada qualquer existência de quebras ou excepções ao padrão... Até o indivíduo se aperceber que é, ele próprio, uma excepção em algo... Há nele uma latente fuga às normas e não sabe que a fuga às normas é em si mesma normal...  Este é o primeiro conflito real do ser: admitir-se excepção ou refutar-se enquanto tal. A uma criança contextualizada no tácito contato social e sobreimposto status quo, ser a excepção em algo fundamental como, digamos, um núcleo familiar standardizado, cons...