Avançar para o conteúdo principal

Remanescência

Há dias em que uma imagem me tem assombrado o espírito e se tem deliciado a impregnar-me o pensamento mais ocioso...
Sou eu. Vejo-me. Vejo-me por trás de mim empurrando umas enormes portas obscuras num chão de mármore cinzento ou de uma qualquer pedra polida até espelhar... É um palácio. Um palácio nunca construído. Onírico. Quimérico. Não abstracto. É daqueles castelos, daqueles paaços que só têm existência possível em sonhos mesmo... Eu sou novo, mas não para os padrões comuns. Estou furioso e desesperado... Empurro as portas porque já lhes bati.. ouço além delas um lamento surdo e fundo que me impele e exorta na urgência. Saltei sobre elas com incomensurável raiva e ressaltei escorregando pelo pavimento vítreo. Agora empurro e as minhas garras não encontram ponto de apoio para basear o meu esforço e escorregam enquanto me tento esmagar contra aquelas gigantescas portas negras desenhadas em alto-relevo com imagens de demónios e anjos abraçando-se e digladiando-se. Eis-me, sob elas, sem saber exactamente em que raça me insiro... Por trás de mim, a lua cheia banha o enorme salão em que me encontro tendo apenas como obstáculos os caixilhos da janela através da qual a sua luz atravessa e o meu corpo que tolda os alvos raios deixando aquela forma negra, inquieta e fera no lajedo.
Eventualmente empurro as portas o suficiente para transpô-las. Com esforço redobrado esgueiro-me pelo espaço obtido a custo e estanco-me num novo salão. Uma sala de trono? Não, um salão de baile. Ela está ali. Ela está ali! Ela está ali!!! Ao fundo, na distante escadaria ilumidada por candelabros apagados cuja cera se debateu para se escapar formando estalactites penduradas... Quadros, símbolos hieráldicos de homens velhos de velhas famílias que eu vi nascer: todos me olham incisivos, altivos nas suas poses arrogantes, das suas posses terrenas que lhes sobreviveram. Todos me acusam e apontam, todos me incriminam e imputam penas crudelíssimas pelo crime que terei cometido. Juízes e algozes do passado responsabilizando-me pelo que não sei. Sei que o salão, que tantas soirées deu, que tanta gente conheceu e viu sorrir, que tantas paixões viu acender, que tantos risos e copos e danças e músicas e luzes e sombras e vozes...... Agora ensombrado por um fétido e ainda quente cheiro a sangue e carne. Suor, ainda... Cheira a morte. Tresanda a morte todo o salão.
Ao fundo, junto ao palanque onde os violinos, os violoncelos e todos os outros instrumentos tocaram... Ao fundo do salão, ela. Corro através do salão tropeçando em objectos espalhados inexplicavelmente pelo chão molhado. Esmago as coisas que piso aos pés com o meu peso, coisas que cedem e estalam, húmidas, nulas, manifestando-se apenas pelo som seco e instantâneo a cada passo meu. Corro e chego a ela... Ao que resta dela...
Os seus cabelos estão vermelhos, mas ela não é ruiva. É sangue. O sangue que jorrara através do seu belo vestido róseo, agora em tons de carmesim... O sangue que se esvaiu primeiramente em jorros e depois num lasso fio enquanto o seu coração exigia mais plasma para continuar a bombear, a bater... O sangue que eu jurei manter no seu corpo derramando o que se mantem no meu se necessário. Está branca. Alvura sepulcral que me assombra o espírito ao ver os seus lábios já sem o ardor dos beijos, a sua face sem o rubor da paixão... Oh, Deuses imortais, os olhos! Os olhos escancarados como as portas da casa da sua alma e através dos quais a habitante deste corpo terá sido expulsa com violência brutal apagando o fogo do lar que habitava. Prendo-lhe as mãos lívidas e frias com a minha garra quente e pulsante... Seguro-lhe a cabeça que ameaça pender se elevar um pouco mais o seu corpo de encontro ao meu...
Olho a janela, virada a este, por onde o luar não entra, e às nuvens de tempestade e seus habitantes exijo a restauração da vida daquela que me fez ver que antes dela não vivia. Seguro-a em meus braços enquanto percebo que o frio que sinto não é apenas do seu corpo mas também do vento que sopra contra as vidraças da grandiosa janela e portada que dá para a varanda... Quase juro e quero enganar-me jurando que fora o vento quem partira os vidros e arrancara as portadas pelas dobradiças... Que entrara em fúria e segara a vida antes da hora propícia para a alma abandonar o corpo. Mas eu sei que não foi o que aconteceu... Vejo a sua face sem vida a chorar as lágrimas que vou deixando cair sobre ela e às minhas súplicas obtenho apenas como resposta um portentoso relâmpago e trovão que fulmina o chão molhado pela chuva iluminando todo o salão. Vejo a morte, a depradação, a devastação espalhada pelo grandioso salão onde os cadáveres que pisara revelam ainda a expressão denunciadora dos perpretadores de tão animalesco crime no instante do relâmpago... Maridos tentando proteger as esposas com o seu corpo viram-no trespassado como se nada fosse, morrendo juntos num só golpe; irmãs agarradas, que se odiavam num combate sem fim pela atenção paternal ou de um qualquer cavalheiro num qualquer baile, presas num abraço de pavor para a eternidade; jovens mancebos de espadas desembainhadas, partidas, esquartejados com requintes de sadismo e selvajaria espalhados pela enorme sala; instrumentos esquadraçados contra as paredes que perderam a forma original, mas que pelo tamanho das cordas ainda é possível identificar; dois dos três magíficos lustres de cristais que se mantinham suspensos no tecto e que nas festas aumentavam ainda mais a luminosidade das velas que continham, desfeitos em pedaços sobre corpos em despedaçados.... A tudo isto me encontraria imune se ao menos pudesse do corpo que abraço obter uma pálida réstea de vida que num sopro permitisse responder ao meu beijo com um beijo...
A garra capaz de esventrar cavalos no campo de batalha e formar pontos de apoio na parede nua e polida lentamente cerra os delicados olhos que a minha alma amou mais que qualquer tesouro ou qualquer outra coisa em tudo o que vira neste mundo (sendo verdade o que ela disse e tendo eu alma)... A tempestade ruge lá fora e o meu coração debate-se contra o peito que o contém, rugindo mais alto que a tempestade e silenciando todos os trovões. Deposito o seu corpo na mármore gelada como ele e da varanda parto para a noite em busca dos responsáveis por tão hediondo feito. Abro as minhas asas e salto o varandim em direcção à lua até que todo o meu corpo não passa de um ponto negro em contraste com o brando corpo celeste.

Comentários

blonde disse…
por momentos viajei... uau!!! é de louvar esse teu poder. esse teu poder de fazer viajar e de entrar em mundos antes desconhecidos... curvo-me perante ti!!!

Mensagens populares deste blogue

parte 1

É atirada ao material uma criança... Um bebé que viria a ser uma criança... À carne, ao físico, ao tempo e espaço. Depois, contextualiza-se e integra-se essa criança num todo... Um grupo de condicionantes e fatores de como é suposto ser tudo. Um status quo inescapável de outros seres semelhantes que surgiram antes... Expectativas, padrões, normalidades, regras e o indivíduo neófito submete-se naturalmente à força passiva dos tantos contra nada, como se não houvesse qualquer violência envolvida. Não é explicada qualquer existência de quebras ou excepções ao padrão... Até o indivíduo se aperceber que é, ele próprio, uma excepção em algo... Há nele uma latente fuga às normas e não sabe que a fuga às normas é em si mesma normal...  Este é o primeiro conflito real do ser: admitir-se excepção ou refutar-se enquanto tal. A uma criança contextualizada no tácito contato social e sobreimposto status quo, ser a excepção em algo fundamental como, digamos, um núcleo familiar standardizado, constitu
"Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste... As paixões dormem , o riso postiço criou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutraliza, e só um ruído sobreleva: o da morte, que tem diante de si o tempo ilimitado para roer. Há aqui ódios que minam e contraminam, mas, como o tempo chega para tudo, cada ano minam um palmo. A paciência é infinita e mete espigões pela terra dentro: adquiriu a cor da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a manha anda e desanda, e, por mais que se escute, não se lhe ouvem os passos. Na aparência, é a insignificância a lei da vida. É a paciência, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde: - Tem paciência – e os teus dedos ágeis tecem uma teia de ferro. Todos os dias dizemos as mesmas palavras, cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os hábitos lentamente acumulados. E o
A todos quantos possa interessar, esta gárgula tem estado em clima introspectivo... A aprender algo em que seja realmente bom, a dedicar-se à escrita para posterior publicação. Só para que todos vocês, que não estando diariamente comigo se preocupam com o meu estado inundando-me com carinhosas mensagens pedindo novas, boas ou más, todos os dias, saibam que está realmente tudo bem. Raios me partam mais os devaneios...