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Perspectivas

Nunca me dei muito a futurologias... Se me dessem a possibilidade de ter o poder de conhecer o que o amanhã me reserva, declinaria o mais educadamente a oferta... o que toda a gente quer, saber do amanhã para mais facilmente poder furtar-se às agruras e armadilhas do destino. É coisa que não me atrai de todo.
Digo isto agora... Passou-se o seguinte:
Há uns anos, numa das minhas solitárias deambulações pelo mercado da cidade, um velho homem que me costumava acompanhar... Correcção,eu costumava acompanhá-lo a ele, por isso andava sempre sozinho porque não tinha quem me acompanhasse a mim. Esse velho homem olhou-me e viu que lhe olhava de baixo. Achou esquisito porque, apesar de não as ver, sabia que havia um par de asas sob as vestes que trazia. E ofereceu-me a possibilidade de ver o amanhã com a mesma lucidez e claridade com que se vê o ontem... "Porque o ontem e o amanhã são equidistantes do hoje... Hoje é a nossa mente, é uma ilha rodeada de tempo por todos os lados... Se fizeres um monte de areia alto como uma montanha na tua ilha, poderás enxergar melhor quer mais distante no passado quer mais além no futuro, basta que depois decidas para qual dos lados te virarás mais. Há sempre certas pessoas que têm binóculos, o que não é comum, e que se dedicam a olhar o futuro e a contar as ondas antes que elas cheguem à praia. Eu tenho um desses binóculos... Quere-los?"
Eu era uma gárgula de asas ocultas, que saíra do ninho não em vôo, mas agarrado à rocha com medo de cair e poder saber quantas e o tamanho das ondas que banhariam as costas foi tentador demais. Aceitei os binóculos e olhei o meu passado... Vi o meu ninho e o meu ovo, e além dele nada pude ver da minha presença pois não fui antes de ser. Ele sorriu como o mestre sorri ao ver que um aluno toma uma opção certa sem indicações, mas eu não reparei... E voltei-me então na outra direcção e prospeccionei as ondas que vinham em direcção e vi tumultuosas ondas de tempestade, vi ondas que me ameaçavam engolir inteiro e à minha ilha e temi... Como o mais egoísta dos humanos, comecei a acumular terra de forma a ter um ponto alto para o qual fugir quando as distantes ondas me varassem as costas. E tendo fugido para o topo do monte, peguei de novo nos binóculos e procurei as gigantescas ondas que me assustaram mas não as vi... Quando perguntei ao velho o que se tinha passado, ele disse-me que basta que se sopre para o mar para que as ondas distantes do futuro se dissipem, não valia a pena criar uma montanha de areia... Reparei que à distância havia apenas mar calmo e que já não precisava dos binóculos para ver as distâncias da curvatura do mar... devolvi-lhe os binóculos e perguntei-lhe porque não se via nada tão longe. Ele respondeu-me que eu não estava tão alto que pudesse ver além do mar porque a minha mente é a minha ilha e o meu horizonte é a minha morte.
Desde então, sei que todas as ondas partem do meu horizonte. E em vez de trepar ao monte para saber de onde vêm, quando vêm e como vêm, prefiro mergulhar no mar, furar ondas, ser arrastado por elas e brincar com a sua espuma. É mais divertido que contar ondas do topo de um monte ou tentar evitá-las.

Comentários

blonde disse…
também deixei de contar as ondas!!!
quanto mais contava as ondas mais angustiada ficava, mais queria contar e ver como eram!!!
só quando deixei de contar as ondas consegui aproveitar o que elas traziam , fosse bom ou mau...
;)

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