Avançar para o conteúdo principal
Caminhava pelo mercado numa tarde fria, vendo os vendilhões vendendo as suas mercadorias nas bancas cobertas por linhos de muitas cores e completamente fascinado pelo odor das frutas, pelo murmúrio indefinível resultante dos pregões e das disputas de negócio... Via as pessoas a irem umas contra as outras, empurrando-se mais por negligência do que por intenção, cada um no seu caminho pessoal.
Nessa tarde reparei num homem. Comprava fruta a peso como as restantes pessoas. Mexia e remexia em tecidos que tencionava comprar... Olhava as pessoas como eu e escondia-se como eu, mas eu escondo-me por causa do meu aspecto e tenho mais sucesso que ele porque, apesar de se esconder, não se ocultava tanto quanto desejaria permitindo que qualquer pessoa lhe visse a cara. Isto fez-me pensar que o que ele ocultava não seria tanto o seu aspecto, mas algo de interior.
Depois de o ver a pagar uma pulseira de um azul majestoso e afastar-se cauteloso da respectiva banca, aproximei-me com a minha cautela do mercador movido pela curiosidade. Questionei-o.
Aquele homem que se ocultava da multidão na multidão era um traidor. Traiu a esposa com outra mulher no passado e diz-se que continue a fazê-lo. Traiu a família que não chegou a ter e que provavelmente não terá em nome de nada. Aquele homem esconde-se de vergonha e arrependimento da consciência dos seus próprios actos. Aquele homem abandonou uma mulher que a ele se tinha entregue de corpo e alma, carne e espírito, por algo que não envolvia de todo qualquer tipo de responsabilidade. Ele sabe que a outra pessoa não lhe pediria nada, que estará com ele apenas enquanto ele a quiser ou talvez menos, partindo sem lhe pedir opinião ou dar informação... Ele sabe que a outra nunca será sua em toda a miríade de formas que a sua própria esposa lhe pertence. Ele sabe que se a sua vida depender do esforço da outra provavelmente morrerá sem que sequer um dedo seja levantado por ele. Ele sabe que nunca uma palavra será proferida com aprovação, esperança, partilha, mutualidade, carinho pela outra mulher como tantas jorram da boca da respectiva esposa que nunca o deixa desamparado apesar dos seus defeitos. Ele sabe que nunca a outra será uma mãe dedicada como a sua esposa, uma parceira fiel para o resto da vida, uma companheira estável e devota como aquela que lhe entregou o seu coração.
Aquele homem convenceu-se de que não merece a mulher que lhe dá tanto amor quanto o que ele gostaria de receber da outra. Aquele homem reconhece o valor daquela que o espera em casa com um sorriso noite após noite, que o espera quando ele sai sem destino mas com um destino certo, que sabe o que vai no coração dele e de tanto temer perdê-lo não ousa levantar a suspeita para confirmar o que sabe. Aquele homem sabe que a ser feita justiça deveria ser tratado pior que os cães escorraçados da porta do talho de cada vez que tenta entrar em casa e ao invés disso é recebido de braços e coração aberto... Aquele homem esconde-se do facto de não conseguir impedir-se de magoar aquela que é incapaz de o magoar e que zela noite e dia pelo bem-estar dele...
Aquele homem sabe que a mulher que ele quer é vaidosa e veste finas sedas vindas de terras exóticas. Aquele homem sabe que a mulher por quem se esforça adora adornos mais do que alguma vez se sentirá capaz de adorar alguém. Aquele homem almeja aquela mulher que, não dando a sua alma a ninguém, não teme partilhar o seu corpo com qualquer homem. Aquele homem convenceu-se que conseguiria mudar aquela mulher a quem a vida levou a tornar-se o que é hoje. Convenceu-se de que merece aquilo. Aquilo e mais: esconder-se de si e de todos para que ninguém pense tão mal dele quanto ele próprio...
O peso que aquele homem carrega nunca me permitiria julgá-lo. Que me atrevesse a fazê-lo, nunca seria tão incisivo, tão brutal, tão persistente e tão cruel quanto a sua própria consciência. Julgá-lo? Quando pensar que não mereço ser julgado, talvez...

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Ele

Há momentos em que, sem perceba muito bem como, um "eu" desperta em dúvida e incredulidade...  É de madrugada. Pelas frinchas da persiana e através do vidro que separa o frio lá de fora do conforto de entre os cobertores, entram lâminas de luz amarela nascida do lampião do lado da rua. Do que se vê do céu, permanece escuro em conformidade com o esperado. E ele surge em mim com olhos de espanto... Acede ao eu para se reconhecer e saber quando e onde está mas é só ao que consegue chegar. Olha em volta... Analisa o que tenho ao meu redor e vê tudo... Não há malícia, nem má vontade, não há desagrado, não há desprezo... Há a admiração de não se aperceber como está onde estou.... "Como é que vim aqui parar? De onde este conforto? De onde a paz? Que foi feito ou que fiz eu para chegar a isto? De onde a força? Como a disciplina? Sorte?  E para onde daqui? Como continuar? Qual a direção ou sentido? Por onde?" E um novo acesso a mim o faz sondar-me a vontade e desejos... Um t

Diálogo - 2 ideias

Sabem os caríssimos visitantes desta minha humilde torre o quanto eu gosto de música não tão apreciada por todos... Aqui há pouco tempo parei no sítio de uma amiga minha e ouvi algo que só ouço quando vou na máquina vermelha, mais depressa do que se voasse, ter com a minha Senhora. Lembrei-me então que sou ainda mais esquisito do que a larga maioria das pessoas que gostam de ouvir este tipo de música em particular.... E acrescentei-lhe um pequeno twist de gosto pessoal. Gosto muito da versão original.... Adoro esta:

Neo-Génesis

Nunca fui pessoa de magoar outrém por dá cá aquela palha... Esta é possivelmente, a entrada mais pessoal neste blog. À quantidade de comments que tenho tido apercebo-me que não é com um blog que vou fazer valer todos os meus sonhos de reconhecimento social e de fama, mas enfim, talvez seja melhor assim... Posso falar à vontade, nem que seja só comigo... Voltando ao início. Sou meio vampírico nas dores que provoco. não consigo deixar de provocar dor sem que prove, em raros mas longos sorvos, um pouco da mesma... Não gosto de, e talvez por isso o evite tanto, provocar qualquer tipo de dor a quem quer que seja. Aqui há coisa de três anos fui obrigado a provocar uma dor, que foi ripostada por uma dor pior, mas que soube a mel porque me permitiu alguma crueldade explosiva na dor que tinha a provocar... soube-me bem, basicamente. Permitiu-me um laivo de sorriso mórbido, sentir escuridão a pulsar em mim, a acumular-se, a gerar pressão sobre as minhas cordas vocais e a apertar-me o coração a u