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Caverna

Então há uma altura em que me encontro no mercado deambulando e espiolhando as almas de quem comigo se cruza e um manto, uma capa com capuz cruza-se com a minha capa com capuz...
Eu estaco imediatamente à passagem de tão familiar capa com capuz e sinto que a outra capa estacou imediatamente à minha passagem...
Viro-me lentamente, a medo, como que a confirmar que não é o reflexo de um espelho o que se cruzou comigo e o reflexo de um espelho que se cruzou comigo vira-se lentamente a medo, como que a confirmar que eu não sou um reflexo de um espelho...
Então olho mais cuidadosamente aquela capa com capuz... o trabalhado, a textura, a cor. Quão familiar... E olho a minha capa com capuz, a cor, a textura, o trabalhado....
Espreito ousadamente para dentro daquele capuz e vejo uma máscara que espreita ousadamente para dentro do meu capuz...
Através de uma aberta vejo um pouco da pele que se esconde sob o manto com capuz e percebo que é semelhante em muito à minha pele que se encontra um pouco à vista através de uma aberta no meu manto com capuz.
Levanto a minha garra à mascara que se esconde sob o capuz daquele manto e uma garra liberta-se de entre os tecidos daquele manto em direção à máscara que se esconde sob o capuz do meu manto.
Sem contestação qualquer, ela pemite que remova a máscara sob o manto deixando-me ver a sua face ao sol num plano que já não é o do mercado e a minha máscara solta-se sem dificuldade à mão dela deixando-a ver a minha face ao sol.
Eu baixo os olhos com vergonha por não ter o aspecto apresentável, imaculado, belo daquela outra face que destapei ao sol e que baixa os olhos envergonhada por não ter o aspecto angelical, limpo e claro da face que a contempla desnuda ao sol.
Eu sorrio, humilde, tácito, tentando com o meu olhar fazer ver àquela doce criatura que não é de todo repugnante como se julga, que, pelo contrário me faz sentir pequeno, sem merecer olhar o olhar que humilde e tácito me afirma doce e me refuta a repugnância que me atribuo afirmando-se pequena e sem mérito de um vislumbre da minha cara.
Naquele momento, garras dadas com a magia com que tantas vezes sonhamos e nunca presenciamos, as nossas almas uniram-se e tornamo-nos dois anjos, dois monstros, duas criaturas que o Destino, em que não acreditamos, uniu. E perdemo-nos um no outro.
Voltamos à Torre escarpada e sinuosa sem entrada e entramos ambos pelo topo, cada um com as suas asas. Ela entra e dá-me as boas-vindas à sua Torre e eu contesto; digo que a Torre é minha.... E chegamos rapidamente à conclusão que a minha Torre e a dela são a mesma. Que apenas a habitamos em Universos diferentes e que agora unidos, se encontram misturados numa familiaridade incomum mas simultaneamente agradável.
Sem motivo para mais contestação, perdemo-nos nos braços um do outro, protegemo-nos um ao outro com as nossas asas aberrantes e adormecemos com a sensação de estarmos realmente em casa.

Devaneios de uma gárgula....

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