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"Dá a outra face." disse ele. Eu percebi o que ele disse no que me relataram que ele terá dito e quando me bateram na face esquerda, à parte de se com razão ou não, dei a outra face.

"Dá a outra face." afirmava. Eu deixei que me batessem pensando que tinham razão. Saindo de mim, como sempre, pensei ser lícito baterem-me porque era o que eu poderia fazer no lugar deles. Ao voltar a mim, dei a outra face.

"Dá a outra face." pediu. Depois de me baterem uma e outra vez, de me magoarem e me marcarem, comecei a considerar que talvez não tenham a capacidade de sair deles e se porem no lugar da face que esbofeteiam... Pensei que talvez parassem de bater apenas porque não queriam ser piores. Mas dei a outra face.

"Dá a outra face." exigiu. E tantas vezes dei a outra face que as faces se tornaram dormentes não pela frequência dos golpes mas pela intensidade dos mesmos. Então já não era uma questão de mérito ou de justiça. Já não era uma questão de sentimento ou de sofrimento... Ainda assim, dei a outra face.

"Dá a outra face." E eu pus a outra face à disposição, ao nível da mão, pronta a ser atingida. Quando, ao pressentir a aproximação da mão violenta, a estaquei agarrando-a no pulso, fui acusado de ser violento e de ser incapaz de compreender o mundo e a vida. Porque as pessoas, têm sentimentos!

Então ergui a minha mão. Rápida e precisa como um relâmpago dirigi-a à face cujas mãos me haviam esbofeteado. Parei a milímetros enquanto os olhos daquela face se arregalavam de surpresa da minha atitude. Com os dedos lassos desenhei naquele rosto uma carícia. Aproximei a face da minha pelo queixo. Beijei-lhe a testa. Com a face dorida sorri. Aproximei-me do ouvido, e antes de desmaiar nos braços agressivos suspirei "Dá a outra face.


Devaneios.

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