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Ambulatio inferior

Eu lembro-me vagamente de me encontrar sentado, empoleirado na minha torre...

Sei que adormeci, ou terei apenas, por instantes, fechado os olhos à luz do dia que refulgia reflectida na minha pele marmórea. Mas fechei os olhos. Ao voltar a abri-los já era noite, ou pelo menos tal parecia. O meu amado céu azul estava coberto de nuvens vermelhas com um fundo negro... mais negro do que qualquer noite que alguma vez vira. A seara que se estendia aos pés da minha torre, queimada. As labaredas na base da mesma, altas, lambiam a pedra sem a queimar. As árvores verdejantes e refrescantes reduzidas a uma quantidade de galhos, sem folhas, vergastando o vento, aguentando-se de pé apenas e só pela incapacidade de fazer outra coisa. Ao longe, a cidade e o mercado desfeitos em pó, gentes e animais desaparecidos, dos edifícios nem as ruínas subsistem.

Sem que conte, e ainda tentando perceber o que se terá passado ou que terrível ilusão será esta, um golpe de vento lança-me da minha torre e eu não sei se por espanto ou por insensatez deixo-me cair de asas fechadas. Mergulho no abismo e deixo-me engolir pelas chamas enquanto a torre se vai tornando cada vez mais ténue à medida que a distância que nos separa aumenta.

Finalmente embato violentamente contra um chão feito de medo, gelado, com labaredas violetas a rastejar por aqui e por ali. Um pequeno animal vagamente semelhante a um insecto sai de um dos muitos buracos e começa a esvoaçar à minha volta. Pouco tarda e outro o imita e outro e mais outro, todos diferentes e todos semelhantes. Eu tento fugir e enxotá-los mas as minhas asas que se mantiveram coladas ao corpo magoaram-se e eu não consigo alçar vôo para longe. Com a tentativa de fuga falhada parto para a agressão. Reconheço tais insectos. Eles atacam-me e de cada vez que me tocam despertam em mim recordações que me esforço por calar.... De cada vez que me tocam, surgem vozes e imagens na minha mente. Vozes e imagens à minha volta, unas com cada um dos insectos, e então sei claramente o que são tais criaturas. São as minhas inseguranças que saem dos buracos dos meus medos. E não consigo escapar-lhes porque as minhas asas estão danificadas.... Enquanto me debato tentando enxotar tais animais, não me apercebo que vou magoando, pisando pequenas criaturas que tentam tapar os buracos de onde saíam os insectos. Que me tentam ajudar... É então que caio de novo no solo, de joelhos....

Um pesado nevoeiro de chumbo ergue-se sobre mim e esmaga o meu corpo de pedra contra o gelado e ardente chão. A minha cabeça é esmagada contra aquele terreno profano e eu sinto a pedra que compõe a minha pele a estalar e a ceder, começando lentamente a soltar lascas. A minhas asas quebradas que tantas vezes me alçaram em vôos maravilhosos tornam-se pesados fardos ao acumular a humidade daquele plúmbeo nevoeiro e são empurradas para baixo, também elas esmagadas de encontro ao solo até que sinto as articulações pelas quais estão presas a ceder e a rocha que as prende ao meu corpo a rachar e a debater-se para não partir. Reconheço no nevoeiro o cheiro, o sentimento, o sabor da culpa de todos os meus pecados e erros. Todas as atitudes, acções, reacções, pensamentos e suposições, todo o mal do meu passado, conhecido e desconhecido, cai sobre mim com este nevoeiro. Esmaga-me num silêncio insuportável eliminando até os insectos-insegurança que me empestavam.
Fico sem a defesa da minha pele de mármore-teimosia e sem a guarda das minhas asas feitas de esperança. Toda a minha forma é aniquilada e eu choro e grito e peço piedade aos demónios que governam este meu inferno. Mas os meus demónios não demonstram misericórdia e o peso do nevoeiro não diminui com o meu apelo. Vejo Miguel ao levantar ligeiramente o olhar e recordo-me de certos ensinamentos... Miguel tem em si o poder de me resgatar, de libertar qualquer alma destas tormentas. Entre lágrimas sussuro "ó, divino. Tu que és como o divino seja qual forma a que o divino assuma.... Cumpre tua função e liberta-me desta opressão. Em nome do teu deus que será o meu pela minha liberdade, salva-me.". Mas o arcanjo-guerreiro não me olha e alçando vôo como eu tantas vezes fiz, deixa-me abandonado à minha sorte. No meu desespero, esqueço o peso que me trocida e apoiando-me num braço ergo o outro ao céu tentando tocar o já distante ser etéreo. Abandonado pelos deuses e pária de mim próprio, exausto, deixo-me cair novamente de olhos fechados e cegos com as lágrimas. De cada lado do meu corpo jazem as duas asas, completamente soltas, despegadas das minhas costas com o peso do que fizera ao longo da vida.

Uma nova criatura aproxima-se de mim dissipando o nevoeiro a cada passo que dá na minha direcção. Um demónio com asas de morcego, uma cauda de serpente, chifres taurinos, porém apontados para trás, patas como as de um falcão e um andar pesado como se pesasse toneladas. Sem ser capaz de olhar acima da cintura, digo com a pouca e inacreditável força que me resta: "Estou indefeso. Elimina-me. Apaga-me da face da existência. Acaba com a minha tormenta.". Ele não me responde, mas o som da sua respiração, pesada, soa-me estranhamente familiar. Vou então escalando aquela figura, que vejo agora ser feita de pedra, com o meu olhar. Para meu horror reconheço-a finalmente. Sou eu. Vejo-me à minha frente como outro.
Incrédulo, olho-me. O meu corpo em mim e não aquele outro... Erguendo-me, pondo-me de gatas, reparo que as minhas garras perderam a força e o aspecto horrendo tansformando-se em mãos humanas, marcadas pelo peso do chumbo da vida e das minhas escolhas. Os meus braços, reduzidos ao tamanho dos braços de um homem, já não conseguirão empurrar enormes montanhas mas apenas trabalhar como todo o humano deve. Ajoelho-me e reparo que a pele que me cobre o ser é em tudo semelhante à mortalha que cobre todos os mortais racionais desde que nascem em vez do lápis de mármore invulnerável. Desprovido de asas e cauda, mesmo as pernas que me permitiam empoleirar sobre o abismo mais profundo de uma forma irreflectida não são agora mais do que pernas humanas, feitas para caminhar e deambular pelo mundo.
A criatura-eu, a gárgula que fui, apresenta-me então um espelho e eu vejo-me por completo. Nú. Nulo. Vazio. De um bolso qualquer, retira uma máscara e oferece-ma com um sorriso. Eu, cabisbaixo, resignado e sem mais nada a perder, olho finalmente a gárgula nos olhos.

À minha volta, a escuridão tomou tudo. Sou eu e ele no vazio etéreo. Ele sorri, eu já não choro. Desvio o olhar e olhando por cima do ombro foco o infinito vazio à minha frente. Olho para cima, onde deveria estar o céu, e pergunto num sussurro: "É isto, a morte?". A ausência de resposta frustra-me. Um pouco mais alto: "É só isto?". De novo, o silêncio... Olho de novo a estátua-viva, muda, imóvel na oferta da máscara. Sorrio. Volto a olhar o céu e grito "Então?! É só isto que consegues fazer?! Que mais me podes tirar?! Vejo as trevas da minha solidão! Encaro a minha criação, o meu eu criado por mim para mim! Ouve-me, Satanás, demónio-mor, quem quer que sejas que governes este plano... Não tenho mais nada a perder!... Absolutamente mais nada. Encara-me e reconhece-me como teu Senhor porque te venci! Sou finalmente Rei de mim próprio!... Que mais pensas tu que me podes tirar?". Então, a gárgula-eu responde-me com a minha voz: "Tudo o que recuperares ou ganhares daqui para a frente poderá ser-te tirado a qualquer momento. Erra e serás meu novamente.". Sorrio e sorri. "Criatura, meu filho, eu-meu... És tu quem é meu, e não o oposto. És tu o meu recluso e refém. E posso errar o quanto quiser nesta errância pela minha vida. O meu escudo será agora a consciência, reforçado com o chumbo das memórias. O meu gládio não será mais que a determinação de não voltar a ser como tu. E eis que te desafio para uma guerra sem quartel que tenciono ganhar independentemente das batalhas que perca.". "Vou perseguir-te até ao fim dos teus dias e vais lutar comigo a solo." diz-me.
"Eu sei." respondo.

No momento seguinte encontro-me no topo da minha torre e o futuro é incerto como o relâmpago. Sorrio com a recém-adquirida capacidade de sobreviver ao meu inferno pessoal.

Devaneios meus...

Comentários

muxymuxy disse…
será que agora vejo um renascimento como prometido? :)

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