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Ele

Há momentos em que, sem perceba muito bem como, um "eu" desperta em dúvida e incredulidade...  É de madrugada. Pelas frinchas da persiana e através do vidro que separa o frio lá de fora do conforto de entre os cobertores, entram lâminas de luz amarela nascida do lampião do lado da rua. Do que se vê do céu, permanece escuro em conformidade com o esperado. E ele surge em mim com olhos de espanto... Acede ao eu para se reconhecer e saber quando e onde está mas é só ao que consegue chegar. Olha em volta... Analisa o que tenho ao meu redor e vê tudo... Não há malícia, nem má vontade, não há desagrado, não há desprezo... Há a admiração de não se aperceber como está onde estou.... "Como é que vim aqui parar? De onde este conforto? De onde a paz? Que foi feito ou que fiz eu para chegar a isto? De onde a força? Como a disciplina? Sorte?  E para onde daqui? Como continuar? Qual a direção ou sentido? Por onde?" E um novo acesso a mim o faz sondar-me a vontade e desejos... Um t
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parte 1

É atirada ao material uma criança... Um bebé que viria a ser uma criança... À carne, ao físico, ao tempo e espaço. Depois, contextualiza-se e integra-se essa criança num todo... Um grupo de condicionantes e fatores de como é suposto ser tudo. Um status quo inescapável de outros seres semelhantes que surgiram antes... Expectativas, padrões, normalidades, regras e o indivíduo neófito submete-se naturalmente à força passiva dos tantos contra nada, como se não houvesse qualquer violência envolvida. Não é explicada qualquer existência de quebras ou excepções ao padrão... Até o indivíduo se aperceber que é, ele próprio, uma excepção em algo... Há nele uma latente fuga às normas e não sabe que a fuga às normas é em si mesma normal...  Este é o primeiro conflito real do ser: admitir-se excepção ou refutar-se enquanto tal. A uma criança contextualizada no tácito contato social e sobreimposto status quo, ser a excepção em algo fundamental como, digamos, um núcleo familiar standardizado, constitu
Eu levo a bordoada. Calo.  Se consigo digerir, se a bordoada é pequena, sacudo o pó e sigo. Se não consigo, disfarço a dor.  Escondo-a no meu cérebro atrás de outros químicos, Dou covardemente tempo à minha mente tempo para não reagir, Oculto a reação em algo, seja o que for, desde que me ocupe a química que faz os pensamentos.... Porque a biologia sabe que a argamassa que me compõe tem limites, A dor, se colocada em espera por outras questões mais urgentes, perde intensidade. Então faço algo. Exijo ao cérebro atenção para outra coisa. Não importa o quê ou quão ridículo. Mais tarde, provavelmente vem a quebra, O meltdown, o afogamento... Desisto e sinto a dor. Agarro-a.  Ainda estou vivo. Ainda sinto. Mesmo que dor, ainda sinto... A dor prova-me que ainda sou humano e que ainda vivo. Agarro-me a ela. E depois vem o cansaço. A dor sente-se presa e afasta-se e fica o mais grave cansaço. E eu suporto o cansaço porque não há mais que fazer ao cansaço além de o deixar estar como roupa a sec
 Eu fui um monstro em forma de gente. Eu fui um traidor  Eu fui um mentiroso. Usei pessoas como objectos. Precisei disso para me sentir bem com a minha própria auto-estima de merda e só a piorei. Nada do que a vida me possa ter atirado para cima pode justificar o porquê de eu ter (mesmo inconscientemente) ESCOLHIDO o caminho mais fácil a curto prazo apenas para sofrer aos poucos até o maior sofrimento se tornar inevitável. Não importaram palavras de carinho e de apoiode amigos e familiares. Não importaram reprimendas ou castigos.  Não importou o que perdi. Não importou o quanto sofri pelas minhas decisões nem o quanto fiz sofrer com as minhas atitudes e atos.  Não importaram orações, maldições, não importaram insultos nem louvores.  Nada importou para me mudar.  Responsabilidade e ownership. Eu assumo responsabilidade por todo o sofrimento que causei.  Eu admito as minhas falhas e defeitos.  Não foram drogas, não foram vícios, não foi falta de fé num determinado Deus, não foi influênci

Minha Celephaïs

Vi nos tons pastel frios do amanhecer, entre nuvens brancas que se confundiam com alvorado ciano, o minguante cândido espreitando tímido. De repente, era uma vela enfonada bailando sobre espuma celeste num mar cinzento, partindo de novo após a devolução das almas sonhadoras aos inanimados corpos que, durante as horas sombrias e plenas de terrores indizíveis, os abandonaram como luvas vãs, vazias da matéria essencial que lhes dá o significado do ser. A escuma erguia-se e apartava-se sob quilha forte e tenaz, num mar revolto mas imaterial e quis a ilusão ou o quebranto da noite ainda imposto sobre a minha visão, que da vela-lua que agora partia, uma tênue linha de memória se formasse e estendesse gentilmente ao meu sentido. Fita rebelde de alvor e luz, como chave em ferrolho único destrancou nos recônditos da minha alma o que Morfeu despótico decretou olvido fazendo de mim ladrão vencedor do erário dos Oneiros. Em meus lábios, a prata fez-se palavra e tiniu gentil mas sonora no ar frio d
  Houve ali um momento, no ponto angular daquela pedra, em que dispus novamente ao vento e à sua misericórdia... "Zéfiro, Senhor," orei para comigo, "toma-me novamente como quando era pequeno e com a mesma facilidade ampara-me no ar impedindo-me a queda... Perdoa-me as costas que te dei ao longo dos anos por ser insensato contar contigo. Toma-me de peito aberto e se acaso não tiveres em ti piedade com que me agraciar, solta-me lentamente para que te guarde apenas como lembrança ou fantasia da infância.". E o vento teve-me, susteve-me e conteve-me, como um velho amigo, como um irmão mais velho que embala desajeitado mas com carinho o mais novo... E de novo as vozes do mundo me alertaram para a insensatez de confiar no vento, de novo me pediram que abandonasse a iminência do abismo, de novo se levantaram em preocupação ante um previsível e evitável destino... E eu... Eu sorri ao vento que atiça o fogo na minha alma, abracei-o mais um momento e despedi-me com mais um
  Estamos numa floresta algures no norte do Vietname, algures perto da fronteira com a China, com vegetação densa que mal permite que os raios de sol cheguem ao chão. Uma aberração, um ser vagamente descrito como uma cobra mas com patas, com o comprimento de quatro homens adultos e formações ósseas tão finas ao longo do corpo e cabeça que quase parecem pelos. Acaba de rasgar o pescoço a um pequeno javali, mas espera caça maior... Imita os sons abafados da sua presa enquanto mescla o seu ondulante corpo com as linhas da floresta... É praticamente invisível por vontade própria, o senhor da camuflagem. O alegado rei da floresta, o felino de corpo laranja rasgado de traços negros aproxima-se, cauteloso. O seu território alarga-se desde o Punjabi até à China. É um portento de força e magestade, temido por muitos e contestado por poucos... Mesmo o Homem sabe que deve deixar as suas cabanas longe dos seus terrenos de caça. Cheirou há algum tempo o sangue do suíno, vem seguindo os berros aflit