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Minha Celephaïs

Vi nos tons pastel frios do amanhecer, entre nuvens brancas que se confundiam com alvorado ciano, o minguante cândido espreitando tímido.
De repente, era uma vela enfonada bailando sobre espuma celeste num mar cinzento, partindo de novo após a devolução das almas sonhadoras aos inanimados corpos que, durante as horas sombrias e plenas de terrores indizíveis, os abandonaram como luvas vãs, vazias da matéria essencial que lhes dá o significado do ser.
A escuma erguia-se e apartava-se sob quilha forte e tenaz, num mar revolto mas imaterial e quis a ilusão ou o quebranto da noite ainda imposto sobre a minha visão, que da vela-lua que agora partia, uma tênue linha de memória se formasse e estendesse gentilmente ao meu sentido.
Fita rebelde de alvor e luz, como chave em ferrolho único destrancou nos recônditos da minha alma o que Morfeu despótico decretou olvido fazendo de mim ladrão vencedor do erário dos Oneiros.
Em meus lábios, a prata fez-se palavra e tiniu gentil mas sonora no ar frio da manhã... Saudades do que esteve para lá da consciência e que antes de em mim esteve em palavras de titãs esquecidos e de fazedores de prodígios... sorrio e adiciono com as résteas do meu ânimo espuma à que pontilha a abóbada superior... Este sonho não é meu... Fica-me a palavra...
Celephaïs.

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