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Una mattina

     O Sol ainda não nasceu... No ar, a chuva da noite ainda se julga dona e senhora de tudo aquilo que tocou sem se aperceber da ameaça que a luz traz... a luz... a fraca e fugidia luz fria da alvorada.
No quarto, quente do sono, ele levanta-se como que de um pesadelo consciente... Vocês sabem... quando a meio do sonho que começa a ser desagradável se consegue travar Morpheu a meio da pintura e se diz "não não não, senhor, isto está tudo mal, isto não poderia jamais acontecer! tire daí o sentido que isso não convence ninguém!" e simplesmente saímos da sala completamente decepcionados com o falhanço do Deus...
Abre os olhos, faz o inventário das funções vitais: 
- respirar, check (bolas!); 
- urina,ena, no vermelho, vou ter mesmo de me levantar já... check; 
- fome, ainda há résteas daquele peso no estômago da quantidade de pizza que comi ontem e.... ah! daí o medíocre pesadelo... pffff... check; 
- sede, claro que sede, não tenho água organismo para compleltar a digestão! Check. 
Por hoje, é tudo.
Pé fora da cama seguido de pé fora da cama, aproveitamento do peso das pernas para contrapeso do do tronco e cabeça, sem complacência pela companhia de cama... Entidades imaginárias não carecem desse tipo de cortesias. Casa de banho, perder peso, cozinha, onde raio estão os mastodontes da loja sueca?, frigorífico, água gelada bebida depressa demais, murro gelado em cheio no córtex, língua encostada de imediato dos alvéolos dentais à úvula, alívio moderado e a luz bate.
"Levantaste-te com as galinhas" diz-me ela, encostada à ombreira da porta vestida com uma camisa minha que não se deu ao trabalho de apertar... Só a camisa e nada mais... 
Olho-a de cima a baixo admirando claramente todos os pedaços de pele visíveis, o cabelo desgrenhado pela noite e por mim, aquele aspecto remeloso de quem acabou agora mesmo de acordar, algo infantil, em que sabemos de certeza que estamos com um hálito de abater ogres mas... "Devorava-a ali mesmo, onde ela está", penso. Fecho os olhos, acabo de beber o frio da água e sinto-o a tomar o meu corpo... Boca, garganta, estômago e aquece. Abro novamente os olhos e ela já não está lá. Nunca esteve. Nunca poderia ter estado... "Vai-te foder, Morpheu", digo baixinho porque pensar não basta. "Sacaninha orgulhoso e pedante que não aceita uma crítica!"
Olho o horizonte e lá ao longe, a doze ou quinze quilómetros, nasce o sol timidamente. 
Que se foda o pôr-do-sol... estou cansado de pôres-do-sol... Pôres-do-sol são absolutamente sobrevalorizados! Como momentos românticos e outros...as pessoas já estão acordadas ao pôr-do-sol, só têm de olhar para o horizonte!... Onde está o esforço nisso? Acordar com alguém ou não chegar a adormecer para ver um nascer-do-sol é que é de um gajo a sério! isso é que é valor!
Ela chega-se a mim de mansinho, descalça, ainda vestida com apenas com a minha camisa e espreita-me por cima do ombro enquanto me abraça por trás e passa as unhas pela minha barriga. Os lábios dela encostam-se ao ombro por cima do qual espreita e encosta a pele dela, fria, na pele que arrefece minhas costas. 
"Anda para a cama, idiota, ainda é cedo", diz-me. "Já  vou... vou só acabar a água", respondo. Acabo a água e dela nem o aroma enfraquecido ao perfume caro que pôs ontem permanece na cozinha... porque ela nunca esteve na cozinha... porque ela nunca esteve... "És uma prima-donna do caralho, Mopheu! Vai à merda, tu, as tuas cenas e o teu orgulho! Vou denunciar-te, minha besta!".
Chego ao quarto, pego no teclado e começo a escrever furiosamente. Acabo a minha diatribe, volto a apagar a luz e sinto a retaliação a gerar-se... os olhos pesados, o conforto dos cobertores... "grande merda, lá vou eu outra vez...."

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