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Piedade

"Sabes o que é fome? Tu não sabes o que é fome a sério!" - diz ela. Eu sorrio e em meu sorriso contenho a chama sádica que tenho, por ser piedoso, de conter. Espero dois segundos para não lhe enfiar a mão entre os dentes e partir um ou outro no processo, eu sou bonzinho. Nesses dois segundos respondo-lhe com sanguinolência nos olhos; respondo-lhe, àquela criatura que não duvido já tenha sido humana; respondo-lhe com menos carinho do que me merecem as pedras da sua sobre as quais ela dorme; respondo-lhe.
Digo-lhe que a única fome que eu conheço é a de ter uma refeição por dia, um pedaço de pão borrado, não barrado, do resto da manteiga que ficou do mês enquanto trabalhava oito horas por dia para que não me faltasse pão até ao fim-do-mês seguinte. Digo-lhe, e acompanho minhas palavras de cortes com um alicate de podar rombo nos dedos, que já fui assaltado por criaturas que, de semelhantes a ela, me amordaçaram e empurraram, me enxovalharam depois de me terem levado os bens que me custaram a pagar. Digo-lhe que nada do que ela tenha feito na vida me é novidade porque desde pequeno me foi imposto aos olhos testemunhar outros como ela a injetar o veneno pelo qual ela luta; outros como ela a vomitar no meio da rua por não terem conseguido ainda a próxima dose; outros como ela mijados, cagados, a tresandar e a apontar-me uma seringa de agulha torta como ameaça pelos meus trocos; outros como ela organizados à espera da caridade da sopa quente numa carrinha.
Enquanto lhe pontapeio a cabeça com um esgar de pura sandice e continuo a pontapear até que o sangue quente irrompa com mais ou menos vontade de todos os seus orifícios, recordo-me que o que eu ganho num mês com quarenta horas semanais de servidão e combates contra mim mesmo para aumentar a produtividade e justificar à empresa, aos senhores da minha sanzala, que sou útil e que não podem ficar sem mim, o valor que eu ganho a acordar cedo e a adormecer tarde todos os dias, é o valor que esta criatura acumula em semana e meia de trocos extorquidos em troca de nada ou de uma arrogância de direitos sobre um lugar de estacionamento na via pública.
Enquanto sinto as costelas daquela criatura cederem à pressão dos meus punhos e os ossos descalcificados das suas pernas quebrarem como galhos secos sob o pateado que lhes concedi, recordo-me dos amigos que tive e das ofertas que recebi, das portas que me foram abertas para o mundo em que ela se encontra e da forma como eu, insultado e gozado como cobarde, me recusei a adentrar porque o êxtase momentâneo não compensava, em meu entender, a perda da minha racionalidade, dignidade e capacidade de me mover sem tremores nem desequilíbrios.
Naqueles dois segundos fiz papa da cara daquela criatura usando nada mais que as minhas mãos para macerar a caveira que ela vai deixar neste mundo como um bem descartável ou um pedaço de lixo que outra pessoa terá de arrumar. Afundei nas suas órbitas os gelatinosos globos até que os meus polegares se enterraram fundo e com prazer na matéria cinzenta que ela não soube aproveitar. Naqueles dois segundos ergui-me sobre o cadáver que ela usou em vida e cuspi-lhe como um ponto final na minha revolta.
Porque é a revolta de quem não compreende como é que aquela criatura decidiu deixar de ser pessoa que me faz tratar aquela criatura como menor que pessoa. É a revolta de saber aquela criatura como capaz, em toda a divindade com que veio ao mundo, de se libertar das amarras que a prendem.É a revolta de saber que se fosse essa a sua vontade, erguer-se-ia e não se exporia, ajoelhada, engolindo sofregamente o pénis a outra criatura que naquele dia tinha tido mais sorte na extorsão em troca da dose que almejava, porque quem tem força para escavar tão avidamente no poço da corrupção humana e foçar no lodo da falta de amor-próprio terá de a ter também para ultrapassar a bílis que o seu sangue pede. É a revolta de poder ter estado no lugar dela e de ter dado valor ao que faz de mim humano em vez de ter abdicado e procurado asilo na insanidade da dependência.
Em vez de ceder a tudo aquilo que me pedia o meu sangue nos jorros de adrenalina, pais do sorriso irónico que me aflora à cara e da violência que me toma a mente, disse-lhe apenas calma e civicamente "Não tenho dinheiro, lamento."
Duas vezes mais, em dúzias de formas diferentes lhe roubei novamente a vida, cada uma mais atroz e feroz que a anterior, porque ela não acreditou que não tivesse o dinheiro que não tinha nem na conta do banco. Duas vezes mais lhe disse, aumentando apenas ao volume da voz de cada vez como rachas no dique da minha educação e cidadania, que lamentava a verdade de não ter dinheiro sequer para um café ou para um pão com manteiga numa confeitaria. O aumento do volume fez com que ela me insultasse enquanto se afastava, gozando com o meu tom de voz menos simpático, chamando-me, como exemplo mais decente, invejoso e egoísta. Aquela criatura que ganha mais de o dobro de mim num mês chamou-me egoísta porque não tinha dinheiro para comer e para a droga e dá sempre primazia à droga na sua opção.
Pergunto-me se seria considerada também doença a psicose que me faria arrancar-lhe a cabeça com as minhas próprias mãos...

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