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Não és tu, sou eu...

  Acho fantástica a perceção de certas almas mais simples de que "tu magoaste-me muito" ou "estás a magoar-me". Isto no que concerne à dor que nos é imposta, regra geral por pessoas próximas ou importantes para nós, a nível sentimental ou emocional. A deceção é entendida como algo como nos fazem e  aceite como uma facada. Aliás, a expressão cumular no que ao português concerne para designar a traição, a epítome da deceção, é a bem conhecida "facada nas costas". Idem, aqui há uns anos não havia casos extraconjugais! Pelos Deuses, que expressão tão pouco carinhosa, tão rude, tão fria!... Não, havia a doce e eufemística expressão "facadinha" no matrimónio. Tem tudo para ser melhor aceite, desde a imagética associada a uma traição - a facada - ao diminutivo essencial para a captatio benevolentia. O ponto central do meu argumento, ao qual regresso, é a responsabilidade da dor. A isenção covarde da qual a maior parte das almas novas padece, atribuindo a outrém a responsabilidade total pela dor que sentem.
   Em contra-ponto, e nisto o Português é pródigo, ao queixar-se da sua maleita, da sua injustiça, do dano sofrido ou da consequência de uma vileza, qualquer pessoa terá de cedo ou tarde emitir um pesaroso "ai de mim" ou um "a minha dor" e mesmo em condições mais pias "a minha cruz".
Assume-se a propriedade das chagas como resultado de uma fatalidade que nos foi imposta pelo destino, por Deus, por alguém. Em última análise, "a dor é minha e foste tu quem ma deu" (quase dava um título para um pungente fado) é a conclusão a que se chega em suma.
   Mas, e deveríeis depreender isto senão pelo título pelo autor, discordo profundamente desta vileza atribuída às outras pessoas que compõem a nossa teia social. Apercebemo-nos amiúde que as pessoas mais próximas são as mais aptas ou mesmo as mais prováveis de nos infligir qualquer dor, propositada  ou despropositadamente. Isto acontece porque atribuímos àquela pessoa uma importância acrescida na nossa vida e tencionamos devotar-lhe mais tempo do que aos ilustres desconhecidos com quem partilhamos este plano. Logicamente, a probabilidade de sofrer um desgosto ou uma decepção na presença de, ou relacionada com, alguém que nos é querido e importante é diretamente proporcional à proximidade que essa pessoa guarde de nós. Ilustremos isto com a morte de alguém filho de outrém, mas quer um quer outro nosso desconhecido. Dita a lógica que  nos doerá tal falecimento como o de um familiar, um amigo, ou um ente querido em geral... Será, no entanto, da responsabilidade do defunto o nojo causado? 
   Um esposo carinhoso e atencioso é flagrantemente apanhado numa vil traição ao matrimónio... Será da responsabilidade do adúltero a dor que rasgue o peito da esposa?
  Um jovem cansado de esconder a sua natureza de familiares que deveriam apoiá-lo e ampará-lo incondicionalmente assume uma homossexualidade perante os retrógrados e homófobos progenitores... Será culpa dele a decepção que os pais sentem ao se debruçarem sobre os últimos anos procurando o momento em que terão errado na educação do petiz?
   No meu ponto de vista, a todas estas perguntas a resposta é "não". O valor que as coisas têm, que as pessoas têm, que os actos têm, que as palavras têm, que o Mundo tem... Somos nós que o damos. Uma mulher submissa procurará em si falhas e ignorará a ignomínia do esposo. O irmão ambicioso consolar-se-á no facto de ser o único herdeiro dos bens materiais que o falecido lhe deixou. Os pais extremosos aceitarão o seu filho independentemente da preferência sexual ou de vícios ou de qualquer comportamento desviante de sua parte... 
   É importante para a maturidade da humanidade em geral que se compreenda que a responsabilidade pelos nossos sentimentos em geral, e em particular pelo nosso sofrimento, não é de al que não nossa. E sabendo isso, que não tema o humano amar incondicionalmente realizando plenamente o amor. Consciente que o amor trará dor. Consciente que o amor trará prazer. E que tão maior será tanto um como o outro quanto maior for a entrega a essa entidade sem corpo tão indefinível quanto a nossa própria essência. Esclarecido do facto de que independentemente de quantas vezes encontremos o sentimento no nosso caminho ou de quantos caminhos diferentes o sentimento nos leve a seguir, a responsabilidade pelo que nos acontece ao longo da vida será sempre e irrefutavelmente nossa. 

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