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Sentou-se junto a mim contemplando a carruagem de Apolo que se despenhava no mar. Sorriu com a última aragem de vento que lhe tocou as faces e disse: "Doce liberdade esta de sentir os zéfiros e como eles não ser prisioneiro de compromissos ou obrigações. De me erguer todos os dias do meu leito e saudar o Sol alto sem cuidar das horas que me restam para que volte à cama. Liberdade de não ter de ser nada para ninguém e ser tudo e todo para mim. Ser independente de laços familiares e ter tantas amizades que não haja um dia só que me sinta solitário, sem alguém que me preencha as vastas horas de ócio.
Obrigado, Mestre, por me teres mostrado o que é a vida e como posso ser um melhor eu se me esforçar por ser feliz."
Eu levantei-me daquele rochedo e pousei a garra granítica sobre a cabeça do jovem que se sentara ao meu lado.
"Não te ensinei nada. As conclusões que tiraste das minhas palavras encaminharam-te a tomares-me como exemplo, mas nem tu me pediste que explicasse o meu discurso nem eu me esforcei para que o assumisses no mesmo sentido em que o produzi.
Quando te falei em liberdade e em independência... Quando te disse que era importante sentir o aroma e a textura do mel da vida em vez de o sorveres ansiosamente... Quando te mostrei os ritmos da terra e do mar, das estrelas e planetas, do cosmos, não queria com isso dizer que virasses as costas a tudo o que de exterior a ti te compõe.
A liberdade e a independência são vãs sem a responsabilidade e a sensatez. Para que quererás tu o maior dos tesouros se tencionas apenas guardá-lo sem gastares uma moeda que seja a ajudares o teu irmão? Liberdade não significa fazeres tudo o que te apetece, ao teu ritmo, tentando integrar-te no ritmo Universal...
Liberdade significa escolher o que não queres fazer submisso apenas não ao jugo da tua vontade mas ao comando da tua sensatez.  E quanto à independência.... Não penses que por não te dares a ninguém és mais rico em ti. A independência obriga-te a prestares contas apenas a ti próprio e desse mesmo modo não teres ninguém que te acuda quando a tua consciência te perseguir. Por isso, deixa, sim, que a brisa do fim-de-tarde te bafeje as faces com um sorriso, mas aprende que a maçã mais doce é aquela que tu próprio colhes. E que mais do que contar contigo próprio e seres o melhor tu que consigas para ti, sê íntegro contigo mesmo e faz por que nunca te deites perseguido pelo que não fizeste. Não sou modelo que se siga, tira as tuas elações do teu raciocínio e não das minhas palavras pois nunca será das minhas palavras que aprenderás, apenas do entendimento que fazes delas."
Abri as asas e deixei que o doce vento me afastasse.

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