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Sempre adorei sentir o vento no cabelo, empurrando-me para trás, impondo a sua força ao meu equilíbrio. Ao contrário da maioria das pessoas, gostava muito dos dias ensolarados de calor, mas os meus preferidos eram aqueles nebulados, mais amenos, em que mais do que se sentir o vento o via a inquietar plantas e árvores... No alto da minha falésia da infância e juventude, passava eternidades olhando o vazio, contemplando nadas e considerando tudo.
Eram outros tempos em que por não ter mais em que pensar pensava em tudo... Concluí tanta coisa de inútil e útil. Frustrou-me ver os meus pensamentos expressos em livros, as minhas conclusões tiradas a limpo por outros, as minhas teorias apresentadas por outros como se deles fossem... Frustrava-me não ter sido o primeiro a pensar naquilo, tanto quanto me agradava aprender com os outros e reconhecer nas ideias de outros validade.
Hoje, os assaltos de preocupações, de problemas e questões quotidianas, assuntos práticos que exigem mais que tempo, disponibilidades incompreensíveis e quase obscenas e insultuosas...
Dou por mim a fazer algo que nunca tinha feito em dia de sol ou de vento... Dou por mim a duvidar de mim e a questionar-me de quão bom sou para esta vida prática, para a ausência de contemplação, para a falta de tempo para sentir o vento e o sol na minha cara... Entristece-me que apanhar chuva na cara seja um luxo gratuíto ao qual não me posso dar para não me constipar.
Está-me vedada a beleza daquilo que não é preciso dinheiro para se ter.
O que me vale e me mantém de pé é ter comigo o mais belo que um homem pode ter e que na altura não me via a ter nunca: o amor de uma mulher. Incondicional, absoluto e mútuo. Como deve ser, como sempre esperei que fosse, como desejei que fosse. Isso basta-me para acreditar que vai realmente ficar tudo bem, que é possível estar cá amanhã e suportar a força do vento que me empurre para trás... Isso....
Basta-me.
Devaneios de uma gárgula.

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