Havia no mercado um homem que sempre me fascinou... Eu, enquanto ser oculto em disfarces e vestes, passei muitas horas a admirá-lo, com os seus andrajos e ar indigente. Cheguei a interrogar outras pessoas acerca daquela criatura tão fascinantemente sublime. Quem era, quem tinha sido, o porquê de passar todo o caminho que o sol rasga no céu sentado ou de pé, mas sempre no mesmo canto do mercado, sorrindo com uma beatitude desconcertante...
Vim a saber que aquele homem tinha sido algo semelhante a um grande magnata do petróleo. Que tivera mais casas do que semanas tem o ano. Que viajara pelo mundo e vivera uma vida invejável pelo vulgo. E o facto de ele ter tido tudo isso e, depois de o ter perdido, não só não ter posto fim à própria vida como ser capaz de sorrir...
Sentei-me uma tarde ao lado dele. Ele olhou-me sem me conseguir ver e eu apercebi-me que ele era cego. Sorriu-me. "Boa tarde, rapazola." disse-me. Eu sorri e respondi-lhe "que tem esta tarde de boa, ancião?". Ele soltou uma gragalhada e acabou por me responder "alguma coisa há-de ter senão não sorririas".
Estupefacto, apercebi-me que ele tinha sorrido para que eu sorrisse para que ele soubesse o que dizer a seguir. Senti-me manipulado pelo velho cego... Exigi ter então uma lição de alguém tão manifestamente ardiloso.
"Sorri porque sorriste, bom velho. A questão que coloco é se terás apenas sorrido com o intuíto de me fazer sorrir, ou se não houve intenção de me arrancar um sorriso com o teu...?"
Ele sorriu de novo.
"Sou cego. Se fiz de propósito para que sorrisses, não importava se sorrias ou não... Mais que não seja porque só tive a certeza que sorriste depois de mo confirmares e se o negasses não teria porque não acreditar. No entanto, posso dizer-te que sorri porque tenho mais do que as razões suficientes para ser feliz..."
"Senhor," disse-lhe eu,"venerável ancião... que tens tu que te permita dizer que és feliz? Vejo-te aqui sozinho, dia após dia. Não aparentas ter família nem tecto e pouco consegues das esmolas que te permita um pão. Segundo soube, já tiveste mais dinheiro do que poderias contar numa vida. Já tiveste mais do que muitos homens poderiam sonhar ter... E agora nem um milésimo do que tinhas retens.... Como podes tu sentir-te bem, sem nada de teu?"
O sorriso desvaneceu-se na cara em que o tempo e a intempérie marcaram as suas garras. "Sorrio todos os dias ao sol que não vejo porque sei que a cada dia que estou vivo é mais um dia que me é permitido admirar as maravilhas do nosso mundo... Já pensei que no ouro e no material se concentrava toda a felicidade, mas apercebi-me que apesar de trazer conforto e alívio, traz também escravidão e prisão a uma vida tacanha. Hoje, não tenho ouro que tema perder. Não tenho família a quem fazer sofrer com a minha morte nem ninguém próximo cuja morte me agonie. As dores que tenho provam-me a cada momento que ainda tenho força para sentir e se sinto, vivo. A cada gota de chuva que me ameaça a saúde apercebo-me do quão forte ainda sou por estar vivo. A cada passo no pó da estrada reconheço a minha resistência e a minha força por não desistir. A cada memória dos meus amores, sinto-me agraciado pela possibilidade que tive de sentir. E a cada queda, a cada tropeço, a cada lágrima, dou o valor de mais uma possibilidade de me levantar, de manter o equilíbrio e de continuar a sorrir.... Porque afinal, meu jovem, vou ter uma eternidade para ter uma caveira sisuda e não dar valor à existência. Concordarás por certo que o meu corpo continuará a existir após a minha morte.... Mas após a minha morte, já não terei como nem porque sorrir."
As palavras do velho mendigo calaram fundo dentro de mim. Nessa tarde, ao lado do velho mendigo que me foi contando memórias do mundo da sua juventude, criei a máscara com o mais belo sorriso que alguma vez seria capaz de conceber. Ainda hoje a uso quando me lembro do sábio ancião.
Devaneios de uma gárgula
Vim a saber que aquele homem tinha sido algo semelhante a um grande magnata do petróleo. Que tivera mais casas do que semanas tem o ano. Que viajara pelo mundo e vivera uma vida invejável pelo vulgo. E o facto de ele ter tido tudo isso e, depois de o ter perdido, não só não ter posto fim à própria vida como ser capaz de sorrir...
Sentei-me uma tarde ao lado dele. Ele olhou-me sem me conseguir ver e eu apercebi-me que ele era cego. Sorriu-me. "Boa tarde, rapazola." disse-me. Eu sorri e respondi-lhe "que tem esta tarde de boa, ancião?". Ele soltou uma gragalhada e acabou por me responder "alguma coisa há-de ter senão não sorririas".
Estupefacto, apercebi-me que ele tinha sorrido para que eu sorrisse para que ele soubesse o que dizer a seguir. Senti-me manipulado pelo velho cego... Exigi ter então uma lição de alguém tão manifestamente ardiloso.
"Sorri porque sorriste, bom velho. A questão que coloco é se terás apenas sorrido com o intuíto de me fazer sorrir, ou se não houve intenção de me arrancar um sorriso com o teu...?"
Ele sorriu de novo.
"Sou cego. Se fiz de propósito para que sorrisses, não importava se sorrias ou não... Mais que não seja porque só tive a certeza que sorriste depois de mo confirmares e se o negasses não teria porque não acreditar. No entanto, posso dizer-te que sorri porque tenho mais do que as razões suficientes para ser feliz..."
"Senhor," disse-lhe eu,"venerável ancião... que tens tu que te permita dizer que és feliz? Vejo-te aqui sozinho, dia após dia. Não aparentas ter família nem tecto e pouco consegues das esmolas que te permita um pão. Segundo soube, já tiveste mais dinheiro do que poderias contar numa vida. Já tiveste mais do que muitos homens poderiam sonhar ter... E agora nem um milésimo do que tinhas retens.... Como podes tu sentir-te bem, sem nada de teu?"
O sorriso desvaneceu-se na cara em que o tempo e a intempérie marcaram as suas garras. "Sorrio todos os dias ao sol que não vejo porque sei que a cada dia que estou vivo é mais um dia que me é permitido admirar as maravilhas do nosso mundo... Já pensei que no ouro e no material se concentrava toda a felicidade, mas apercebi-me que apesar de trazer conforto e alívio, traz também escravidão e prisão a uma vida tacanha. Hoje, não tenho ouro que tema perder. Não tenho família a quem fazer sofrer com a minha morte nem ninguém próximo cuja morte me agonie. As dores que tenho provam-me a cada momento que ainda tenho força para sentir e se sinto, vivo. A cada gota de chuva que me ameaça a saúde apercebo-me do quão forte ainda sou por estar vivo. A cada passo no pó da estrada reconheço a minha resistência e a minha força por não desistir. A cada memória dos meus amores, sinto-me agraciado pela possibilidade que tive de sentir. E a cada queda, a cada tropeço, a cada lágrima, dou o valor de mais uma possibilidade de me levantar, de manter o equilíbrio e de continuar a sorrir.... Porque afinal, meu jovem, vou ter uma eternidade para ter uma caveira sisuda e não dar valor à existência. Concordarás por certo que o meu corpo continuará a existir após a minha morte.... Mas após a minha morte, já não terei como nem porque sorrir."
As palavras do velho mendigo calaram fundo dentro de mim. Nessa tarde, ao lado do velho mendigo que me foi contando memórias do mundo da sua juventude, criei a máscara com o mais belo sorriso que alguma vez seria capaz de conceber. Ainda hoje a uso quando me lembro do sábio ancião.
Devaneios de uma gárgula
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