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Nobre

E eu, que sempre aspirei ao alto, que sempre desejei o infinito... No amor e na guerra vale tudo, diz-se. Vale tomar praças de assalto e paços de cerco. Vale esperar que dentro das muralhas se acabem os víveres para que não o invasor mas a fome vença o invadido. Vale quebrar portões e desconjuntar barreiras a ariete. Vale tomar o rei inimigo pela espada e ocupar-lhe o trono e vale deixá-lo no trono, submisso ao vencedor do confronto...

Há dias, ia eu pelo mercado, manto longo de capuz ocultando-me as feições e alguém me falou... Como é meu apanágio, por vezes mais regular do que desejaria, parei, voltei-me e reparei na criatura que me falava. Ela tinha-me puxado o manto que se mantivera preso e seguro, mas só agora reparava na mão dela, ainda presa no tecido para se assegurar que obtinha a minha atenção. Não tinha levado, por esquecimento ou por negligência, a máscara para a minha deambulação, por isso adaptei melhor o capuz para me esconder as feições e falei-lhe. "Que se passa?" perguntei-lhe eu. "Que posso fazer eu por ti?".
Ela sorriu-me e disse-me "Senhor, vós sois nobre. Nobre em porte, em atitudes e actos. Não vos conheço, milorde, mas sei algures em mim que em vós se cala uma tristeza que sabeis bem como calar e matar, e que porém não desejais cumprir qualquer das opções.... Milorde, caro senhor, dizei-me por vossa graça, que vos faz andar assim sob o Sol, entre a turba, entre a multidão? Tão recluso em vós, tão submisso e tão cativo nessa masmorra interior que não vos agrada nem vos favorece em nada... Senhor... Se tendes a chave para sair de tão pútrida cela em que vos encontrais... Lorde que desconheço, porque não a usais?".
Eu sorri-lhe e coloquei a minha máscara em simultâneo. Olhei-a nos olhos e disse-lhe enquanto lhe passava a garra pelo rosto gentilmente... "De que falais vós? Não me conheceis e vindes em meu socorro e auxílio numa aflição em que não me encontro... Por em bem vejo e reconheço que sois pura de intenções e em cuidados, mas doce criatura que tão solicitamente me estacaste o passo, não posso em verdade dizer que saiba a que te referes em tua fala de prisões e dores...".
Ela exibiu uma feição de dor, quase ofensa ou desagrado com a minha atitude e aproximou-se mais de mim. Lentamente baixou-me o capuz e eu nada fiz por me sentir seguro da minha máscara. Ela aconchegou a mão dela à minha quente garra e ainda com a dor estampada no rosto levou a sua pequena mão ao meu. "Senhor," disse-me ela "tendes estranhas, e diria que confusas senão inúteis, formas de vos esconderdes em vossa dor... Não compreendo como esperais ocultar-vos ou negar vosso estado caminhando nú, à luz do dia e à vista de qualquer habitante desta Urbe. E bem vejo como olhais e desejais a paz e a harmonia que se encontra deste lado da cela, mas... caríssimo senhor, meu bom e nobre senhor, perdoai-me a ousadia e a intromissão visto que me sinto tão mais invasora quanto menos vos conheço, mas... Não conseguis ver, Senhor, que quem esperais que vos delibere a alforria está, também ela própria, na vossa situação? Senhor, meu bom senhor, se quereis ser livre, libertai primeiro quem julgais ser a detentora do poder de vos soltar.".

Nesse momento a máscara que tão ineficazmente havia colocado caiu... Ou se calhar aquela criatura que nunca vira tinha razão e eu cometera a impudência de caminhar nú e desmascarado à vista popular. Nesse momento, deixei um joelho tocar a terra, deixei a cabeça pender para a frente e reparei que depois de ter descido ao Inferno e voltado ainda tinha muita estrada a percorrer no Purgatório.


É preciso coragem para enveredar pelo caminho difícil quando o mais fácil é mais apelativo. É preciso sensatez para nos guiarmos pelo caminho difícil quando o mais fácil era mais recto. Sensatez é das coisas mais raras neste mundo...


Devaneios de uma gárgula....

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