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Subi de novo ao topo da minha torre... Céu limpo. A lua cheia brilhando alva fazia-se reflectir no lago, impondo-se na paisagem. Iluminando cada erva, junto ao mercado da cidade, ao longe...
Para onde quer que olhasse, na abóbada celeste, estrelas cadentes e flamejantes percorriam a estrada de santiago de ponta a ponta sem o mais pequeno impedimento à vista...
Abri as asas à noite esperando o vento ou o frio nocturno que me permitisse augurar para onde, a distância a que.... Nem a mais pequena brisa. Ainda que alado, se me projectasse das borda desta minha torre profana não conseguiria voar. Estou preso na torre que criei.
Caminho para um lado e para o outro, fazendo silvar a cauda contra a laje. Estalando a pele das asas com um bater repentino. Sentindo a minha torre fria, estéril, solitária e triste sob as minhas garras...
Desço aos meus aposentos. Abro o Index... Ensaio uma e outra leitura até que a noite me parece eterna e cada bater de asas de uma ou outra borboleta surge vagaroso e dolente... Um compasso atrasado, abrandado... Tudo é lento de mais... Tudo é lento demais.......
Levo a mão ao peito e sinto o meu coração à velocidade costumeira... Cada bater e bombear de vida no seu tempo, ao seu ritmo.... Chronos terá, ele sim, enlouquecido e abrandado o tempo quase até à imobilidade sepulcral?
Indo a uma das estantes confirmo em um dos livros que o tempo é, de facto, relativo. Não absoluto... Que à velocidade da luz tudo parece imóvel e estático. Pergunto-me que se terá passado para o tempo abrandar tanto comigo...
Lá fora, a lua brilha sobre a planície e o lago. Não se moveu no seu trono celeste apesar das horas que deambulei pela minha torre. Ao longe, para cá da cidade funesta e do nefasto mercado, uma onda arrasta o trigal e as plantas, como uma gigantesca serpente do deserto, deslocando-se de lado... Lenta, porém.
Num momento, os meus olhos iluminam-se com a luz da lua e o livro que mantenho ainda comigo cai-me aos pés... Vejo a trajectória que cada canto do livro segue, num movimento de rotação sobre si próprio. A capa... As folhas... Sucedendo umas às outras, voltando-se para mim na queda... Ouço então uma voz do passado... Um Deus ou um Mestre... Que baixo e pausadamente me diz, como antes, "Jovem gárgula... Quando achares a loucura no mundo e nada fizer sentido... Quando todas as vozes que ouvires apontarem o teu erro apesar de te saberes correcto... Quando tudo no Universo te parecer obscenamente errado e agressivamente opressivo à tua forma de estar e de ser.... Nesse dia considera a possibilidade de que quem oprima e esteja errado possas ser tu... Coloca perante ti a hipótese de que o Mundo não esteja contra ti, mas que estejas tu contra o Mundo."...
Nesse momento levo a mão ao peito e espanto-me de novo... Espanta-me como pode o meu peito conter o meu coração, que supunha em paz e compassado, e que agora se debate contra todo o meu corpo para se libertar... De joelhos, abraço-me e cerro os olhos com força tentando acalmar o coração que se revolta contra mim que sou a sua prisão... O meu coração quer voar para longe além das serranias e dos rios... Atravessar lagos e campos...
Abro os olhos e apercebo-me que a pressão não passa, que a revolta do meu coração não se apazigua, que nada cessa o tropel e a turba no meu peito.... Antes de soltar um urro visceral contido em mim, como que a manifestação do desacato em que me encontro, abro os olhos e reparo que a borboleta que passa sobre mim não está mais lenta nem mais rápida do que os Deuses a tencionaram de início.... a onda de vento atravessa veloz a planície... o grito irrompe através das amarras que o contiveram e eu salto pela janela para mais um vôo nocturno... Na tentativa de, pelo cansaço, silenciar o zunir que contenho em mim.....

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