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Hotel California

Soubera eu o que sei hoje e faria tudo da mesma maneira... Esta é uma atitude sábia e consciente face à vida, no seu final... Infelizmente, é-me practicamente impossível ter esta atitude neste meu estado actual.
Parvoíce a minha, meu jovem, não me apresentei. Não adianta de nada saber o meu nome, toda a gente que pudesse conhecê-lo já o esqueceu... e em boa verdade até eu próprio, se não o tivesse assinado tantas vezes naquele livro negro, já o teria esquecido...


Pediu-me que lhe contasse o que faço aqui? Ora bem, para tal, convinha-lhe saber que já tive algum dinheiro até deixar de o ter, não por o gastar ou desperdiçar, mas apenas por, tal como com o meu nome, deixar de achar utilidade para ele. Sou Nova Iorquino. Toda a minha vida foi vivida entre Newark e o Maine, onde vim a ser advogado. Nunca me casei, nunca tive filhos e não fosse a minha vida à noite correndo de bar em bar, pouca sorte teria com as mulheres.... Acha-me bem-parecido? Gentileza a sua, por certo. Mas não era o meu aspecto o que afastava as mulheres. Diga-se de passagem, e não tome este meu sorriso como gabarolice maliciosa, salvo raras excepções, sempre levei para a cama quem quis, quando quis. Depois da cama é que deixava de achar utilidade para elas, como deixei de achar utilidade ao dinheiro e ao meu nome.


Bourbon? Não? Tenho dois copos e só uma boca, esteja à vontade para se servir se desejar. A garrafa está aí.


Um dia acordei com uma sensação de incompletude brutal. Um dia, outro, outro. Sabia que não era falta de uma família. Sabe Deus, se me conhecer, o sacrifício que todos os anos no dia de acção de graças me obrigava a fazer para pegar no meu Chevy Corvette de '57 e rumar a Providence onde morava a maior parte da minha família, pais e irmãos incluídos. Não era falta de dinheiro pois a minha casa em Newark sempre foi maior do que um solitário inveterado alguma vez precisaria. Não era amor, porque nunca fui muito dado a sentimentalismos nem nunca me dei a ninguém completamente.... Faltava-me uma quebra na rotina. Uma fuga ao quotidiano.


Uma noite, como tantas outras em que não saía de casa por cansaço, enquanto fazia zapping entre os canais regionais e nacionais, vi um programa acerca de viagens por estrada, costa a costa, Atlântico ao Pacífico... Dei por mim a pensar "ora aí está o que me está a fazer falta!". No dia seguinte anunciei no escritório que ia, pela primeira vez em dez anos, meter férias. Que ia viajar. Não me alonguei em detalhes nem me perdi em pormenores. Pedi apenas que alguém tomasse conta de alguns casos pendentes de menor importância, e visto que os maiores peixes não se encontravam em sarilhos, não tive grande dificuldade na autorização para deixar a minha posição na empresa em stand-by até ao meu regresso daí a menos de um mês.


No dia seguinte, limpei o meu Corvette fora e dentro e fiz as malas. Partiria ao anoitecer.


Salvo paragens para gasolina quando necessário, o meu menino não me deixou nem uma única vez mal. Cleveland, Illinois, Davenport, Omaha, Denver, Las Vegas... Dia após dia de estrada. Tudo, até aqui chegar.... Você também? Não estranho. Não considero isto uma coincidência...

Então, numa das poeirentas estradas do deserto, à noite, ia eu com a capota em baixo apanhando o vento fresco nocturno do deserto no cabelo e vejo ao fundo da estrada uma luz bruxuleante na escuridão da interestadual... Quase instantaneamente senti-me assaltado por um cansaço enorme... A minha cabeça latejando... Pálpebras pesadas como chumbo... Só podia ser cansaço, pensei eu... Todo o dia, todos os dias, ao volante. Com o calor de dia e o frio da noite... Estava mesmo a pedí-las... Ao aproximar-me apercebi-me que era um Hotel de beira de estrada e não hesitei. Encostei o carro no parque de estacionamento e decidi que iria passar aqui a noite antes que perdesse os sentidos a conduzir e o carro me levasse pelo meio do deserto, fora da estrada, até recobrar a consciência. A minha visão já estava meio turva quando desliguei o motor, com o sono, e assim permaneceu até que a vi.
Sim, o Hotel era este mesmo... Eu vi-a, de pé, à porta e quase como por magia todo o cansaço se desvaneceu da minha mente. Um anjo num vestido, no meio de nada à porta do que à primeira vista parecia uma espelunca de beira de estrada... Ao aproximar-me reparei nos ornamentos da fachada... Este hotel estaria melhor enquadrado na baixa de Nova Orleães do que aqui.


Dei por mim a pensar cá comigo "rapaz, isto tanto pode ser o Céu como o Inferno.." depois da inscrição feita e enquanto ela me guiava com uma vela alumiando-me o caminho para o quarto. Subidas as escadas, o cansaço abateu-se de novo sobre mim, ou pelo menos eu atribuí ao cansaço o facto de me ter parecido ouvir umas vozes ao fundo do corredor que me saudavam alegremente, apesar de não ver de onde ou de quem poderiam elas vir. "Benvindo ao Hotel Califórnia. Que belo lugar... E que cara tão simpática...!" Ela perguntava-me se estava tudo bem comigo... Obviamente, não parecia ouvir o mesmo, como eu, e voltei a aperceber-me do quão cansado da viagem estava. E de novo as vozes ouviram-se mais claras, mas saíam da boca dela e as palavras ditas não eram dela como as vozes que as diziam: "há muitos quartos vagos no Hotel Califórnia... em qualquer altura do ano.".

Entrei e tentei dormir mas não conseguia... Aparentemente a casa estava lotada e tinha tido o azar de chegar num dia em que havia um baile... Estava morto de cansaço mas a música latina ressoava pelas paredes do hotel, impedindo-me o descanso...

Desci, ainda vestido com a roupa da estrada porque nem a conseguira despir antes de me atirar para a cama. Atravessei o hall do hotel e dirigi-me, seguindo as setas, para o grande salão, de onde vinha a música. É lá estava ela, rodeada de homens, aparentemente ricos. O vestido de noite com que me atendera à chegada justificou-se de imediato... Ela circulava entre eles com o seu cocktail na mão como um daqueles carros importados, a classe e a elegância de um Mercedes enquanto distribuía tampas por todo o lado com um sorriso nos lábios. Eu que em N.I., não levava para a cama quem não queria apenas pude ensaiar um "concorrida, a nossa anfitriã..." à passagem dela... Ela mirou-me pelo rabo do olho ao cruzar-se comigo e com um sorriso nos lábios disse como num sussurro "São só amigos...".

Mais tarde, tendo ido à varanda, bem a vi a girar nos braços de um e de outro... Com o cheiro das noites de verão do deserto misturado com o álcool derramado pelo chão e o suor dos dançarinos... Bebendo com quem dançavam... Dançando como quem bebe... Uns dançando para a recordar, outros, para esquecer.

Tendo feito amizade ao falar com o "Capitão", o barman da copa, sempre sem despregar olho daquela beleza de alvura sobrenatural, cuja pele poderia quase ofuscar a lua cheia que se erguia sobranceira como Dona e Senhora do imenso deserto sobre o qual se encontrava, pedi-lhe: "Bourbon com gelo, por favor, duplo." repetidamente. Mandava copos a baixo como se de água se tratasse, até que lhe disse que deixasse ficar a garrafa. Ele sorriu-me e disse-me "Já não temos cá uma atitude como essa desde 69!". Desisti da garrafa quando ela desistiu de mim de vazia e subi para o meu quarto.

Ainda assim, ouvi as vozes, como se me chamassem do muito longe, acordando-me a meio da noite, dizendo "Benvindo ao Hotel Califórnia. Que belo lugar... E que cara tão simpática...!". Despertei do sono e vi-a, entrando no meu quarto, despindo o longo vestido azul-turquesa que se mantivera colado às suas sinuosas curvas ao longo da noite, cuja cor fazia os seus olhos de um azul mais profundo faíscarem com uma beleza feroz. "Estão a usufruir do Hotel Califórnia... Uma agradável surpresa... Tragam álibis...!"

Quarto com espelhos no tecto... Ela deitada sobre mim, completamente nua como eu... Champanhe tinto a gelar, trazido por ela e deixado na beira da cama...

Diz-me ela "Aqui somos todos prisioneiros das nossas próprias maquinações...".

E foi então que reparei naquilo em que antes o álcool e o cansaço não me permitiram reparar antes. Uma enorme cicatriz aberta entre as costelas do lado direito, sem sangue já, mas
que permitia ver as costelas, o osso...

Assustado, empurrei-a de cima de mim para o chão e levantei-me rapidamente... Os olhos dela, a sua face ia se lentamente descarnando ficando apenas peles soltas como se de uma idosa de idade muito avançada se tratasse... Ela olhava-me do chão e eu, nú, de costas para a porta, procurava com a minha mão a maçaneta sem tirar os olhos dela com o meu coração a bater descompassado no meu peito.

Consegui sair do quarto apenas para me encontrar imediatamente no grande salão, frente a uma criatura horrenda, enorme, que se alimentava daqueles que há horas atrás estavam a dançar... Agarrava um corpo de cada vez e decepava um braço ou uma perna, conforme os apanhava.

Uma das pessoas ainda me gritou "Fuja, homem, fuja dos aposentos do Senhor!". Aparentemente teriam lá sido reunidos todos para tão macabro festim... E o mais inconcebível é que a criatura atirava os corpos decepados para os cantos do salão e, enquanto permaneciam imóveis, os membros arrancados regeneravam-se para lhes permitir outra hipótese de luta ou fuga... Havia pessoas a agarrarem em facas das mesas de aperitivos e salgados, postas para o baile, e a tentarem sem sucesso esfaquear a criatura para a matarem.

A última coisa de que me recordo é de desatar a correr para a porta tentando fugir, voltar à estrada... "Tem calma..!" disse-me o camareiro, "temos ordens para receber bem... É que podes assinar a saída quando quiseres, mas saíres de facto, nunca o farás..."

Isto, meu amigo, é tão verídico como o facto de aqui estar a falar contigo... A propósito, algum tempo depois apercebi-me que tinha as marcas no corpo próprias de quem esteve num grande acidente. No jornal que cá foi entregue no dia seguinte, aparecia um chevy corvette de 57 todo amalgamado... Aparentemente o condutor adormeceu ao volante e tendo ido inconsciente pelo meio do deserto, caiu com o carro por uma ravina. O corpo nunca foi recuperado nem encontrado, aparentemente...



Comentários

Dahnak disse…
Mais um conto de terror dos meus...tenho outros... qualquer dia publico-os...
blonde disse…
ya, eu gosto da música... e por incrivel que pareça, embora eu tenha achado macabro o teres publicado neste dia e eu o estar a ler às 2 da manhã, eu gostei! tens jeito...
e já agora fico à espera para ver os outros...
Anónimo disse…
Bem, finalmente venho cá comentar apesar de ter lido este conto logo no dia! LOL!
Devo dizer que gostei bastante. Está bem escrito (como aliás, é teu apanágio) e muito imaginativo, embora te tenhas "servido" da música.
É como eu digo...este é só mais um dos teus talentos. :)

Agora vê lá se não ficas todo babado...! ;P

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